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“A única instituição que pode nos salvar do imenso problema que é o plea bargain é a Defensoria Pública”

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O ministro da Justiça e Segurança Pública (MJSP), Sérgio Moro, apresentou no início do mês o Anteprojeto de Lei Anticrime. Dentre as medidas destacadas por ele, estaria a adoção do plea bargain – modelo de Justiça criminal consensual ou negociada que se desenvolveu na tradição do sistema jurídico norte-americano. O anteprojeto será uma das abordagens da palestra “A crise do processo penal e o que esperar de 2019” do professor titular de Direito Processual Penal da PUC-RS, Aury Lopes Junior, que acontece no dia 20 de fevereiro, às 18h30min, na sede da Defensoria Pública do Ceará e promovida pela Escola Superior da instituição. Na ocasião, Aury, que é doutor em Direito Processual Penal, divide a bancada com o magistrado e Doutor em Direito (UFPR), Alexandre Morais da Rosa que discursa sobre “Novas tecnologias defensivas no jogo processual”.

Em entrevista exclusiva à Defensoria, Aury Lopes Júnior destaca que “a Defensoria Pública é fundamental e permeia toda a discussão na medida em que ela é um dos principais agentes dentro do sistema de administração da justiça”. E, por isso, acredita que os defensores públicos de todo o país precisam se debruçar sobre o anteprojeto apresentado, em especial pontos como plean bargain, que afetará de forma direta os mais vulneráveis. “Quando você tem um modelo em que de cada 10 processos, nove se resolvem por negociação sem processo e sem juiz, você tem um imenso problema, tanto é que os Estados Unidos têm a maior população carcerária do mundo. É claro que nós temos que ampliar o espaço de negociação, mas se passar esse plea bargain aberto, do jeito que ele está propondo, importado e americanizado, vai ser o fim do processo penal brasileiro. E a única instituição que pode nos salvar do imenso problema que é o plea bargain é a Defensoria Pública, se recusando a fazer acordos”, destacou.

Sobre o anteprojeto, o Colégio Nacional de Defensores Públicos-Gerais (Condege) expôs sua preocupação em nota pública que afirmou que “projetos que se destinem a melhorar a eficiência do sistema penal brasileiro não podem ir de encontro ao exercício do direito de defesa dos indivíduos, que é legítimo e advém das garantias fundamentais asseguradas a cada brasileiro”. Além disso, a Comissão Nacional de Direito Criminal do Condege está elaborando um parecer técnico apontando as principais críticas ao novo projeto, esmiuçando dispositivo a dispositivo, com a finalidade de propor o debate sobre o tema.

O professor destacou ainda a distorção trazida pela quantidade de habeas corpus nas cortes superiores, como um “sintoma de uma doença, de um sistema que não está funcionando”. Esta e outras análises serão trazidas por ele na entrevista completa.

Nessa semana, o ministro Sérgio Moro apresentou um anteprojeto chamado lei Anticrime. Na sua avaliação, quais os principais pontos que precisam ser discutidos pela comunidade jurídica?
Primeira coisa, este é um projeto “a la carte”, que desconsidera todo o trabalho feito nos últimos anos na medida em que existem o Código de Processo Penal e as modificações das Leis de Execução Penal que já estão transitando no Congresso Nacional há anos, fruto de amplo debate e ampla análise de estudo de impacto penal, impacto processual e também carcerário. O projeto do Moro desconsidera completamente tudo isso, faz uma proposta conforme o gosto dele, dentro daquilo que ele acha importante e do que ele gosta, então é um “Código Moro”, a partir da cosmovisão dele. Em cima disso, está trazendo algumas questões de constitucionalidade discutível, como a prisão em segunda instância, que vai refletir também na questão da prisão no júri, porque o Supremo vai julgar isso em abril, e se o Supremo disser que a prisão de execução antecipada é inconstitucional, esvazia todo o projeto. Se o Supremo disser que é constitucional, não precisamos do projeto dele sobre isso. É uma medida completamente sem sentido por conta disso. Depois existem outras propostas completamente “a la carte” dentro do Código Penal e do Código Processual da Lei de Execução Penal, inclusive, sobre questões que o Supremo no passado já disse que eram inconstitucionais, como por exemplo a vedação de concessão de liberdade provisória. Ele muda a redação do artigo 310, quando o Supremo no passado já disse que isso era inconstitucional. Ele (Ministro) traz outros pontos que já tem relações de inconstitucionalidade que ele simplesmente desconsidera. Portanto, tem uma série de alterações dentro daquele pacote básico, pedante da opinião pública, que é endurecer penas, enrijecer o regime de cumprimento das penas, uma fórmula bastante conhecida e não resolve. Se fazer lei penal no Brasil resolvesse, nós não teríamos mais problemas.

O senhor acredita que o endurecimento das legislações penais possam efetivamente resolver a violência?
A “questão violência” é um fenômeno social complexo que decorre de fatores biopsicossociais em que você precisa de tratamento legal, mas nós no Brasil só temos leis penais. Se endurecer a lei resolvesse, a lei de crime hediondo, por exemplo, tinha acabado com o crime de estupro, com o homicídio qualificado, tráfico internacional, mas não acabou, só aumentou. E isso é apenas um exemplo. Para além dessas questões, você tem que trabalhar com mais, que é o sistema carcerário e as causas da violência, que em momento algum são tratadas nessa nova proposta.

Que medidas em questão poderiam ser mais eficazes para tentar amenizar a crise no sistema carcerário?
A primeira questão que você precisa considerar sempre é que Sérgio Moro é um ex-juiz federal, a visão do mundo é a visão da justiça federal. Ele talvez conheça no máximo uns quatro presídios federais. O Brasil é um país de dimensões continentais, o sistema carcerário brasileiro é medieval, caótico e absolutamente dominado por facções. Isso precisa ser enfrentado, o Estado precisa retomar o controle do sistema carcerário. Obviamente precisamos sim ter mais presídios para ter o mínimo de condição de humanidade nisso tudo, mas também não adianta cairmos no sonho ingênuo de acreditar que encarcerar resolve todos os problemas. Claro que punir é necessário e civilizatório, mas é fundamental perguntar como punir. E é aí que estamos errando.

Qual o papel da Defensoria Pública dentro dessa discussão?
A Defensoria Pública é fundamental e permeia toda a discussão na medida em que ela é um dos principais agentes dentro do sistema de administração da justiça. Por exemplo, uma das propostas do Sérgio Moro é de inserir o Brasil numa ampliação do espaço negocial, o plea bargain. É claro que nós temos que ampliar o espaço de negociação, mas se passar esse plea bargain aberto que ele está propondo, importado e americanizado, vai ser o fim do processo penal brasileiro. E a única instituição que pode nos salvar do imenso problema que é o plea bargain é a Defensoria Pública, se recusando a fazer acordos. Eu espero, honestamente, que os defensores estudem essa matéria e tenham consciência do imenso problema que ele representa, que já está demonstrado inclusive nos Estados Unidos. Quando você tem um modelo em que de cada dez processos, nove se resolvem por negociação, sem processo e sem juiz, você tem um imenso problema, tanto é que os EUA tem a maior população carcerária do mundo. Quem pode barrar o plea bargain, entre outros, é a Defensoria Pública. Não só nos ajudando no combate esse pacote do Moro, que todas as instituições jurídicas precisam resistir, mas, caso isso passe, os defensores têm que se conscientizarem de não fazer acordo. A não ser em último caso, em situações extremas, quando realmente for mais benéfico. Se não, vão entupir ainda mais os presídios de pobres.

Muitos defensores recorrem ao habeas corpus como uma forma de combater abusos de direitos fundamentais, uma vez que o acesso a estes estão sendo cada vez mais relativizados. O HC é mesmo um remédio constitucional que visa sanar ilegalidades ou tem sido apenas usado para cumprir parte de um ‘rito’, visto às tantas negativas em prejuízo direto aos direitos individuais?
O habeas corpus (HC) é um instrumento fundamental, mas no Brasil, ele começou a ser demonizado pelos tribunais superiores sob o argumento de que haveria uma banalização do uso do HC. Até podemos ter uma parcela pequena de uso indevido, mas é preciso compreender que se nós temos uma enxurrada de habeas corpus no Supremo Tribunal de Justiça (STJ) e no Supremo Tribunal Federal (STF) hoje, isso é sintoma de uma doença, de um sistema que não está funcionando. Ou seja, existe sim um atropelo sistemático de direitos de garantias fundamentais que tem gerado essa demanda do habeas corpus. Segundo problema: eles criaram tantas dificuldades para você ter acesso ao STJ e ao STF pela via do recurso judicial extraordinário, é tamanha a jurisprudência defensiva, que você não consegue chegar ao STJ e ao STF senão pela via do HC. Então, ele acaba se revelando um instrumento fundamental, pena que alguns ministros e desembargadores dos tribunais abaixo sigam com esse discurso de não conhecer, porque cabe recurso, desconsiderando que os recursos não são acessíveis para a imensa maioria das pessoas.

Serviço
Palestra “Processo Penal em Debate” com Aury Lopes Jr. e Alexandre Morais da Rosa
Data: Quarta-feira, 20 de Fevereiro, às 18h30
Local: Auditório da sede da Defensoria, Av. Pinto Bandeira 1111, Luciano Cavalcante, Fortaleza.
Inscrições feitas no local