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ACP da Defensoria pede que município garanta reforço escolar permanente nos abrigos

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“Educação não transforma o mundo. Educação muda as pessoas. Pessoas transformam o mundo”.
(Paulo Freire)

A educação atravessa fronteiras e, como diz o educador Paulo Freire, é transformadora.  É compreendida por Gabriela*, 11, como uma ferramenta para realizar mudanças, e logo vai transformá-la em “doutora ou polícia”. Gabriela é uma das 29 meninas que moram no Lar Santa Mônica, unidade de acolhimento institucional para crianças e adolescentes de 7 a 18 anos, em Fortaleza. Cursando a 2a série do Ensino Fundamental, ela diz que sua matéria favorita é matemática. A explicação? É porque “gosta de resolver problemas, que nem 5+5=10, viu?”. Mas, nem sempre a educação esteve presente em sua vida. “Tia, eu sei que eu tenho 11 anos e é errado eu estar na 2a série, mas é porque quando eu tava em casa com meus pais eles não deixavam eu estudar, eu tinha que cuidar dos meus irmãos. Mas eu prefiro estar no colégio, porque tem recreio e mais tempo para brincar”, percebe, com a vivacidade de quem já conhece também as dores do mundo ao redor.

Desde novembro de 2014, o Lar Santa Mônica possui um espaço de educação, o Centro Cultural Santo Agostinho, que dentro do lar recebe as meninas acolhidas para as atividades educativas e escolares. As atividades de reforço acontecem de segunda a sexta-feira, das 7h às 11h. Professoras ministram aulas de reforço, como Língua Portuguesa, História, Geografia, Ciências, Alfabetização, Matemática e fazem as tarefas escolares. Há 10 anos, a professora Graziene Oliveira, 36, cumpre essa missão de ajudar estas meninas acolhidas a se transformarem. “Minha função aqui é ser professora e supervisora do Centro Cultural, que é o complexo que tem as salas de aula e a biblioteca. Todos os dias venho para cá para realmente ajudar as crianças nas tarefas escolares, fazer o acompanhamento escolar delas. Eu tenho contato de todas as coordenadoras das escolas, da maioria das professoras, sempre que há algum problema elas entram em contato, por exemplo. Olhamos agenda, calendário das aulas e provas, participamos de reuniões. É como se fosse o papel de uma mãe, mas na parte da educação”, explica.

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As meninas frequentam a escola diariamente no período da tarde. Durante a manhã, é o momento do acompanhamento e de finalizar as tarefas. O reforço escolar é imprescindível para o desenvolvimento de cada menina, principalmente porque elas vêm de um contexto diferente e de violações de direitos. “A maior dificuldade é a escrita e a leitura, mas, principalmente, a questão do hábito do estudo. Elas vêm de uma realidade que estudar não é comum, muitas estão com atraso na escola, pela questão do histórico de violações, e elas compreendem isso. Nosso desafio é fazer com que elas criem gosto para o estudo, vejam a importância, fazendo perceberem que, através do estudo, irão adquirir a liberdade e autonomia. Colocar isso de uma maneira, ao mesmo tempo, lúdica e séria é um desafio. Temos que prover o carinho, mas também temos que colocar disciplina, pois o estudo requer disciplina”, diz Graziene.

A realidade do Lar Santa Mônica, em Fortaleza, no entanto é uma exceção entre as 19 casas de acolhimento da cidade. O contexto da educação dentro dos abrigos ainda é um desafio, faltando políticas que entendam a sensibilidade do tema para crianças e jovens que já passaram por outras privações.

No abrigo Renascer, em Fortaleza, o contexto de aprendizagem é desafiador. Meninos de 15 a 18 anos, vindos em sua maioria do Interior do Estado, chegam com um lapso educacional muito grande. “A maioria dos meninos que são acolhidos aqui estão, muitas vezes, quase três anos fora da escola. Isso gera um problema maior, porque ultrapassa a faixa etária escolar, é impossível fazer a matrícula deles. A escola regular não é mais opção, então temos de recorrer ao Educação de Jovens e Adultos (EJA) e ao Centro de Educação de Jovens e Adultos (CEJA) e também encontramos dificuldades”, explica a assistente social Elizabeth Pinheiro, 56.

As maiores dificuldades no Renascer também envolvem leitura e escrita. “Recebemos casos aqui que o menino realizou a matrícula, mas nunca frequentou a escola. Quando precisamos realizar uma busca ativa nas escolas para poder dar entrada no EJA ou CEJA para ele, verificamos que ele está na 3a ou 4a série do Ensino Fundamental. Tudo inicia pela educação e ela é muito importante para os meninos acolhidos, principalmente porque eles vêm de uma realidade fora da escola há anos ”, destaca Elizabeth.

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Em setembro de 2018, a Defensoria iniciou uma parceria com o Centro de Integração Empresa-Escola (CIEE) para encaminhar jovens dos abrigos ao mercado de trabalho e sentiu essa dificuldade de perto. Dos 38 jovens, nas idades entre 14 e 18 anos, que participaram da seleção para integrar uma das empresas conveniadas ao Programa Bolsa Estágio do CIEE, apenas 11 foram selecionados. “Chamou atenção, tanto do CIEE como do Nadij, o baixo nível de escolaridade dos adolescentes. Percebeu-se que, apesar de devidamente matriculados na Rede de Ensino Público, inclusive com aprovação ao final do ano para série subsequente, muitos adolescentes apresentaram déficit significativo de aprendizagem com dificuldade de interpretação de texto, dificuldade de escrita, raciocínio matemático e lógico e, mais grave ainda, alguns sequer sabem ler e são incapazes de escrever o próprio nome”, relata a defensora pública titular da 1a Defensoria do Núcleo de Atendimento da Defensoria Pública da Infância e Juventude de Fortaleza, Ana Cristina Barreto.

“A Defensoria resolveu averiguar a situação de forma mais aprofundada e oficiou a todas as unidades de acolhimento a fim de obter informações sobre a real situação das dificuldades na escolaridade das crianças e adolescentes, tendo recebido uma extensa listagem que contém de forma detalhada as dificuldades de aprendizagem e as necessidades individuais de cada acolhido, algo que impacta na conquista da autonomia deles”, explica

Em junho de 2019, o Núcleo de Defesa dos Direitos da Infância e da Juventude (Nadij) da Defensoria Pública do Estado do Ceará ingressou com uma Ação Civil Pública contra o município de Fortaleza para garantir mais programas e serviços de fortalecimento da educação das crianças e adolescentes em situação de acolhimento. Segundo dados levantados pelo Nadij junto aos abrigos, pelo menos 152 crianças e jovens estão precisando de modo direto de reforço escolar ou de uma atenção especial educacional, pois apresentam, em sua maioria, dificuldades no aprendizado, além de listarem nominalmente problemas como dificuldade de escrita, motora e de memorização.

A ACP tramita na 3a Vara da Infância do Fórum Clóvis Beviláqua. A situação narrada é alarmante, cabendo um olhar diferenciado das autoridades públicas. No pedido à justiça, a Defensoria pede que o município forneça reforço educacional às crianças e adolescentes acolhidos, assegurando programas, projetos e serviços de fortalecimento da educação.  “O maior objetivo do reforço escolar, no momento, é de fornecer melhor amparo ao futuro a essas crianças e adolescentes que estão sem retaguarda e amparo familiar, cabendo ao ente público esta obrigação que é constitucional e também está no ECA, sobre a educação delas”, confirma a defensora pública.

 A  coordenadora do setor de Psicossocial da Defensoria Pública do Estado do Ceará, Andreya Arruda, avalia que as questões emocionais  dessas crianças e jovens podem ter um impacto na questão da aprendizagem. “Muitas dessas crianças e jovens acolhidos passaram por graves situações de violações e tiveram que ser retiradas do seio familiar e isso pode ocasionar sentimentos que podem se refletir de forma direta no aprendizado, na concentração, na socialização, no convívio na escola e até no próprio desejo de aprender. Um olhar multidisciplinar de profissionais, a oferta de um suporte especializado e sistemático para as áreas da saúde, a educação e da assistência social destes meninos e meninas pode fazer um diferencial nessa questão”.