Posso ajudar?
Posso ajudar?

Site da Defensoria Pública do Estado do Ceará

conteúdo

“Ainda espero pelo dia em que o Judiciário nos olhe de forma humanizada como a Defensoria Pública me olhou”

Publicado em

IMG_3261

No dia 2 de fevereiro de 2018, Kaio nasceu, pela segunda vez, aos 38 anos. A gestação, que durou aproximadamente dois anos, foi dolorosa, cansativa e silenciada. Após a intervenção do Núcleo de Direitos Humanos e Ações Coletivas (NDHAC) da Defensoria Pública do Estado do Ceará, Kaio conseguiu a almejada retificação de nome e gênero.

Hoje o sociólogo Kaio Souza Lemos, tem 58 quilos e 1,59 de altura, é do gênero masculino, nascido em Fortaleza. “Renascer” é o termo que utiliza. “Passei nove meses no ventre da minha mãe, a partir disso, tudo me foi imposto. O gênero feminino, os planos que tinham traçado para mim e o meu nome. Nunca me pertenci. Vivi o assujeitamento. Quando fiz 33 anos, depois de lutas incessantes de aceitar o que queriam me impor, me deixei ganhar, foi então que comecei o processo de transição de gênero”, relata ele que é um dos assistidos da Defensoria Pública que conseguiu, após decisão judicial, retificar nome e gênero na sua certidão de nascimento.

A decisão proferida pela juíza da 2a Vara de Registros Públicos, Sílvia Soares de Sá Nóbrega, cita que “se lhe fosse proibido assumir seu verdadeiro sexo e exercer o direito de retificar o assento de seu nascimento, surgiriam fontes de constrangimentos e dissabores inadmissíveis”. Uma realidade já bem conhecida para Kaio.

Para a defensora pública e supervisora do NDHAC, Sandra Sá, “a dor de não ser aceito pelo o que se é é dimensionada no testemunho e na angústia de quem procura a Defensoria Pública. A instituição serve como instrumento para ter acesso ao direito fundamental acerca da própria identidade de gênero, que é materializada no centro das ações de alteração de nome e gênero, feitas no Registro Civil e diante da documentação burocrática que era exigida para instrumentalizar as ações”.

A metáfora do renascer, descrita por ele, relata a luta e a conquista de ser reconhecido como Kaio para a sociedade. “Eu já sabia quem eu era, o que eu queria para minha vida e como eu queria. Essa espera pelo resultado da ação me trouxe a possibilidade de sair para o mundo. Com a nova documentação, poderei arrumar um emprego, ir atrás do meu mestrado, existir”. Kaio fala ainda sobre o que passou por não ter sua identidade de gênero reconhecida. “Por causa de documentação, perdi duas seleções de mestrado, porque havia contradição no nome do registro e quem eu aparento ser”.

“Idealize, planeje e lute”. Essa é a resposta de Kaio quanto à realização de sonhos, tal como a da retificação da documentação. “Tem coisas que é bom a gente nem sonhar, sabe. Melhor é se planejar e lutar, ir atrás. A gente tem que lidar com causos reais, do dia a dia, nossa força se faz assim. Quando a gente sonha demais e não tem espaço pra isso, a queda é maior”, pondera. Destes planejamentos, um que Kaio pensa é o do mestrado. “O plano ideal seria entrar no mestrado de Antropologia, que é minha área, e conseguir tocar minha minha carreira. Mas em paralelo, tenho vontade de trabalhar com direitos humanos. Quem mais capacitado pra lidar com isso do que alguém que também é considerado minoria vulnerável?”, questiona.

Outro planejamento é o da cirurgia de mastectomia. Programado para este ano, o procedimento é uma decisão pessoal que integra as mudanças na vida que se propôs. “Pra somar com a alegria da retificação, irei realizar no próximo dia 9 de abril a primeira parte da minha cirurgia. Foi algo que idealizei e lutei”, acrescenta. Para ele, a luta das pessoas transexuais em Fortaleza tem tido significativos avanços. “Os avanços na cidade, hoje, se deram por causa de nós mesmos, não posso deixar de falar isso. É nossa luta diária que não nos deixa parar, principalmente”, afirma.

Abrigo Thadeu Nascimento – Criado para abraçar pessoas transexuais em situação de vulnerabilidade, o Abrigo Thadeu Nascimento está com treze homens e mulheres transexuais. “A situação de todos é muito delicada. Alguns foram rejeitados pela família, a maioria; outros não têm onde morar mesmo. Tem ainda  a dificuldade de arrumar emprego, que é grande, e a gente tenta arrecadar dinheiro realizando bazar de roupas e produção de artesanato”, explica Kaio, que é fundador da ONG. Criado em agosto de 2017, o Abrigo Thadeu Nascimento é uma homenagem ao vendedor, homem trans, que foi espancado e assassinado dentro de casa, em maio de 2017, em Salvador.

O sociólogo diz que recebe diariamente ligações de pessoas trans em situação de vulnerabilidade, mas que não tem como receber todas. “Estamos correndo pra viabilizar um novo prédio, talvez um prédio público, para instalar o Abrigo. Assim, poderemos receber mais pessoas e ter apoio dos órgãos públicos”, projeta. Ele se viu impelido a fazer alguma coisa para mudar esta situação de extrema vulnerabilidade da população trans, que hoje passa à margem de muitas políticas públicas de inclusão. “Muitas destas pessoas são rejeitadas pela família ou ficam muito tempo afastadas, como foi meu caso. A readaptação da família se dá, principalmente, com a educação visual. Se a gente muda de gênero e volta ao seio familiar, há sempre um susto, depois eles vão acostumando”, relata, em tom  confessional, que ainda há relutância dos familiares da mudança de nome. “Minha mãe vê o nome como minha identidade ou algo sagrado, talvez. Vou esperar estar com as documentações em mãos para poder contar a ela”, confessa.

A saga da mudança de documentos pode ter fim agora com a recente decisão do Supremo Tribunal Federal (STF). Pelo entendimento da Corte, as pessoas trans têm o direito de alterar nomes e sexo no registro civil sem a necessidade de realizar cirurgia de redesignação sexual, sem apresentar laudo médico pericial e sem judicializar ação. A defensora Sandra Sá diz que o STF reconhece a decisão como um direito potestativo, que é o direito sobre o qual não recai qualquer discussão, ou seja, ele é incontroverso. “O entendimento de que não é necessária a cirurgia de redesignação de sexo, nem de autorização judicial, facilitará bastante o reconhecimento e, caso os cartórios não observem o novo entendimento, os interessados devem procurar o Núcleo de Direitos Humanos e Ações Coletivas da Defensoria Pública para que possamos solucionar os obstáculos, seja por via judicial seja extrajudicialmente”, explica. A decisão aguarda ainda regulamentação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). “Ainda não sabemos como funcionará a aplicabilidade dessa decisão, mas, com certeza, é uma conquista para nós. Ainda espero pelo dia em que o Judiciário nos olhe de forma humanizada, como pessoas que existem, como a Defensoria Pública me olhou”, critica Kaio.