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Consciência de direitos: vítimas de discriminação racial resistem e aguardam resolução de processos

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O artigo quinto da Constituição Federal de 1988 traz em suas primeiras linhas: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”. A igualdade contemplada na letra da Lei, porém, segue sendo batalhada diariamente por milhões de brasileiros negros. Ao longo dos últimos anos, indicadores sociais da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD) apontam que a parcela da população preta ou parda ainda é maioria nos dados de analfabetismo, taxa de desocupação, trabalho infantil e média salarial.

O cenário atual, que resulta de um processo histórico, sempre é lembrado no Dia da Consciência Negra, comemorado nesta terça-feira, 20 de novembro. Desde a sua criação, a data tem como objetivo promover a valorização da cultura negra na formação da sociedade brasileira, bem como debater aspectos sociais e culturais que impulsionam o racismo nos dias de hoje.

Há um ano, a manicure Sara Cristina, de 32 anos, sofreu discriminação por ser negra através de mensagens da internet, enviadas pela namorada de um amigo do marido. “Ela começou a me ofender quando soube que eu era amiga de uma desafeto dela. Simplesmente começou a me enviar ofensas raciais, ridicularizando meu cabelo, minha cor e meus traços físicos”, lembra. Ela procurou a Defensoria Pública do Estado do Ceará por conta da gravidade das ofensas. “Decidi denunciar, porque sei que é racismo. Não é só contra mim, pois afeta várias outras pessoas”.

Com a denúncia ela foi orientado em relação a dois processos: um na área criminal e outro por danos morais. Sara acompanha as duas situações, mas ainda não houve desfecho. Para piorar, continua sofrendo discriminação. “Ela agora envia mensagens sobre o pagamento da indenização, dizendo que não vai dar em nada. Não aguento, já cheguei a ficar doente por causa disso. Não é só falta de educação, é também uma questão de impunidade”, defende.

Resposta que demora a chegar – A assessora institucional Sulamita Lino, 26 anos, ainda lembra do dia em que ficou detida em uma loja de departamentos, sob suspeita de ter furtado produtos. Após o constrangimento, ela procurou o Núcleo de Direitos Humanos e Ações Coletivas da Defensoria (Ndhac), que deu entrada nas ações de indenização por danos morais e criminal. Entretanto, a Justiça ainda não deu resolução ao caso.

“O processo anda um tanto quanto congelado. Tive uma audiência oficial com advogada e representante da loja. Eles oferecem um valor, mas minha condição é que esse dinheiro seja investido em treinamento aos profissionais, para que casos assim não se repitam. Eles continuaram apresentando o dinheiro como única resposta, alegando que a loja já tem código de ética e que trata sobre preconceito juntos aos funcionários. Contra-argumentei, pois, se de fato existe essa iniciativa, ela obviamente não está funcionando, já que não fui e não serei a única pessoa a sofrer com as práticas racistas institucionalizadas”, explica Sulamita.

O defensor público Eliton Menezes, atualmente na 4a Defensoria Cível, atendeu o caso na época. Segundo ele, existe dificuldade de ocorrer conciliação nessas situações, embora haja tentativa de negociação ou retratação. “Nesses casos, entramos com ação civil indenizatória, além de enviar uma representação criminal ao Ministério Público para que investigue o caso e processe o ofensor. Mas a resolutividade apresenta certa demora, cerca de dois ou três anos”, afirma.

Para a defensora pública Nelie Marinho, do Núcleo de Direitos Humanos da Defensoria, a questão da celeridade envolve um cenário maior de demora de julgamento dos processos. “O problema da demora é antigo. Entramos com ações das mais diversas natureza diariamente, e o despacho inicial não foi dado. Nas varas cíveis, para onde vão as ações de indenização, a celeridade se apresenta ainda mais comprometida”, argumenta.

A importância de denunciar – “Racismo é crime inafiançável e imprescritível. Aqui na Defensoria, nós tomamos ciência a partir das declarações de quem foi vítima e damos encaminhamentos necessários. Recomendamos que a vítima faça boletim de ocorrência para acionar os entes públicos e dar andamento à investigação criminal, além das esferas de danos morais, que poderão ser acionados”, informa Nelie Marinho.

O crime de racismo, previsto na Lei n. 7.716/1989, consiste em ofensas que atingem uma coletividade indeterminada de indivíduos, discriminando toda a integralidade de uma raça. Conforme a lei, o indivíduo que comete este crime está sujeito à pena de reclusão que pode chegar a cinco anos, dependendo do caso.

Há também outra conduta que pode se enquadrar em crimes dessa natureza: a injúria racial. Ela está prevista no Código Penal e, segundo o dispositivo, consiste em utilizar palavras e expressões referentes à raça ou cor com intuito de ofender a honra da vítima. A pena para quem comete esse crime é de reclusão de um a três anos e multa, com agravante para casos violentos.

A violência foi o gatilho da agressão sofrida pelo estudante africano C.A.C. Em Fortaleza para concluir uma pós-graduação, ele chegou a mudar de endereço na capital após ouvir ofensas raciais e sofrer agressões físicas por parte do vizinho, em dezembro de 2017. “Ele chegava a cuspir quando eu passava”, relembra. A primeira providência do intercambista foi prestar o boletim de ocorrência e procurar a Defensoria Pública do Ceará, além da Defensoria Pública da União (DPU). Já houve audiências de conciliação, ainda sem resolução. “O agressor diz que se defendeu, mas se defendeu de quê? Eu nunca o agredi. As pessoas cometem o crime e depois se fazem de inocente”, lamenta. Ele também aguarda a conclusão do processo antes de retornar ao país de origem, no próximo ano.

Segundo o defensor público Eliton Menezes, os relatos de agressões racistas são recorrentes. “No caso de C.A.C, foi ainda mais grave devido ao uso de violência. Mas o que nos chega de mais frequente são os casos em que se utilizam de elementos discriminatórios. Há aí um componente social e cultural, em que o racismo velado vem à tona”, explica. O defensor reforça a necessidade de denunciar. “O boletim de ocorrência deve ser feito de imediato. Também pedimos para, se possível, o assistido guardar provas como prints de internet, gravações e contato de testemunhas para deixar documentado”.

Frases de realidade e de resistência – “Ainda existe muito preconceito por conta da cor da pele, do cabelo. São palavras fortes. Eu decidi denunciar porque sei o que é racismo. Foi algo que tentei barrar. Não é só contra mim, afeta várias outras pessoas. É falta de impunidade e uma questão de educação”

(Sara, manicure)

“Vivo na sociedade que institucionaliza o racismo e que reverbera discurso de ódio contra negros e negras, contra minha existência. Todos os dias sofremos com as violências do racismo, desde que eu coloque o pé pra fora de casa, às vezes nem precisa, porque a internet faz esse papel muito bem. Mas eu passei a me fortalecer e estar mais em espaços negros, falando, debatendo, lendo e ouvindo de outras mulheres negras suas vivências e experiências. Isso foi e tem sido muito importante na minha vida. Desde então poder falar sobre sobre questões me permeiam minha realidade, enquanto jovem mulher negra, é saber que não estou sozinha e nem preciso estar”
(Sulamita, assessora institucional)

“A questão é macro e não consegue ser resolvida de um dia para o outro. São situações que calam, engolimos muitos sapos. Em contato com africanos residentes em outros estados brasileiros, vejo que a situação é a mesma. Já viajei, mas aqui no Ceará sinto as questões raciais mais latentes. Isso é um traço ruim para todo ser humano. Aqui no Brasil, tem um povo bom, alegre e amigável. Preto ou branco, somos todos iguais. Mas infelizmente tem pessoas que não entendem isso ou não foram ensinadas sobre respeito”.
(C.A.C, estudante)

Saiba mais – O Dia da Consciência Negra foi instituído nacionalmente em 2011. A data é uma homenagem a Zumbi, líder do Quilombo de Palmares e morto no dia 20 de novembro de 1695. Estimativas dão conta de que a comunidade quilombola chegou a acolher 20 mil africanos escravizados. O local é considerado até hoje um símbolo da resistência negra na luta contra a escravidão que existia oficialmente no Brasil.