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Defensoria traça perfil das mulheres vítimas de violência no Ceará

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saudeMulher

“Na época não tinha consciência de que eu também era vítima de violência doméstica. A gente vê isso acontecendo com outras mulheres, mas nunca imagina que vai acontecer com a gente. Admitir pra si mesma é muito difícil”, confessa a costureira Raquel Siqueira (36). Ela é uma das centenas de mulheres atendidas pelo meio do Núcleo de Enfrentamento à Violência contra a Mulher (Nudem) da Defensoria Pública do Estado do Ceará (DPGE), que durante os meses de abril a dezembro do ano passado realizou um estudo e traçou o perfil das suas assistidas.

Para entender como a violência contra a mulher se manifesta e conhecer o perfil da assistida e do agressor, a equipe de atendimento psicossocial responsável pelo Nudem aprimorou o formulário de avaliação situacional, com a inclusão de questões que abordam desde os fatores sociais como: renda, escolaridade e status de relacionamento, até os tipos de violência doméstica e o histórico familiar do agressor e da vítima. “Inicialmente esse questionário era aplicado pela defensora pública Elizabeth Chagas que possui uma grande sensibilidade com essa pauta e quando a equipe multidisciplinar passou a desenvolver suas atividades no Núcleo, nós não tínhamos como propósito traçar o perfil das nossas assistidas, mas tínhamos a visualização de que alguns fatores implicam no estopim da violência como histórico da infância do agressor e da vítima e o uso de substâncias entorpecentes como drogas e álcool e partir daí nós fomos aperfeiçoando o questionário, pois isso tudo pode potencializar a violência. É comum ouvirmos relatos de mulheres que afirmam que o companheiro só é ruim quando bebe, por exemplo”, pondera a assistente social, Elvira Machado.

O relatório denota que a maior parte dos agressores são ex-companheiros e ex-maridos, com 42,15% e 24,59%, respectivamente, e que, em 62,24% dos casos, já vivenciaram situação de violência, sobretudo na infância. A violência acontece em ambos os espaços (público e doméstico) em 61,35% dos casos e os principais fatores que potencializam essa violência são: álcool (29,64%); drogas (16,99%); ciúmes (16,75%). As formas de expressão da violência mais recorrentes são: psicológica (32,34%), moral (27,63%), física (24,69%), patrimonial (9,86%) e sexual (5,17%).

E quem são as vítimas? Mulheres como a costureira Raquel Siqueira, 36, que relata sua história com orgulho de si mesma por ter tido coragem e determinação para sair da realidade de violência. Ela namorou à distância durante 8 anos e depois decidiu se mudar para Ubajara para finalmente iniciar a vida à dois, mas nem imaginava que sua vida iria se transformar para sempre: “Depois que eu fui morar com ele, tudo mudou. Eu não reconhecia mais aquela pessoa. Ele apreendeu todos os meus documentos, mantinha sempre todas as portas de casa trancadas para que eu não saísse e não tivesse contato com nenhuma outra pessoa, controlava a forma que eu me vestia e me punia sempre que sentia que estava sendo contrariado, regulando até mesmo o que eu comia e quando íamos sair de casa, ele me ameaçava e fazia me prometer que ninguém jamais saberia o que estava acontecendo. Eu fui prisioneira dele e a situação piorou cada vez mais depois que oficializamos o casamento civil, eu vivi um inferno”, relata.

A sorte de Raquel foi um descuido do ex companheiro durante a reforma na casa: “Como estavam pintando as paredes, as portas estavam abertas. Ele esqueceu de trancar a porta do quarto antes de sair e espiando notei que além dessa, todas as portas da casa estavam abertas. Percebi naquele instante que essa era a única oportunidade que eu tinha de sair dali. Não pensei duas vezes e fugi. Corri com toda a toda a força que pude e a primeira coisa que eu vi na minha frente foi uma associação de agricultores que me acolheram e chamaram a polícia. Eu nunca tive dúvidas de que eu queria denunciá-lo e de que queria justiça. Se eu pudesse dizer alguma coisa para uma mulher que está passando por isso é reaja, não se cale, grite”, emociona-se.

Outra mulher que teve sua vida marcada tão cedo pela violência foi a professora da educação básica e estudante universitária do curso de Pedagogia da Universidade Federal do Ceará (UFC), J. B (26). A jovem casou-se muito cedo, com apenas 21 anos por conta de uma gestação não planejada. Desde o início da gravidez, Judite relata ter sofrido violência por parte do ex-marido, soldado do corpo de Bombeiros Militar: “Desde a gestação eu já sofria agressões. Tudo vinha sem motivo aparente, bastava ser contrariado ou pego na mentira que já partia para agressão física, desde empurrões (ainda grávida), tapas na cara, difamação, mentiras e empurrões”, rememora.

O tempo passou e a filha do casal nasceu e hoje, com apenas 4 anos de idade, a menina já presenciou e também já sofreu agressões: “Uma das mais fortes foi quando aos 2 anos de idade presenciou o pai me agredir impetuosamente por ter sido contrariado. Ele me enforcou em sua presença, disse que ia me matar olhando para a criança e ainda me sufocou com travesseiro. Pude ver sua carinha de medo, pavor, e então ela disse ‘solta a minha mamãe’, correndo para me abraçar. Após esse incidente nossa vida nunca mais foi a mesma, ela tinha pesadelos durante a noite e ia dormir conosco na cama, durante a noite disparava chutes ainda enquanto dormia, que acabava atingindo seu pai, inconsciente, e para fazê-la parar, ele lhe dava diversos beliscões e ela acordava chorando. Aguentei por muito tempo, porque ainda o amava, mas chegou um momento que nem o amor me fez aguentar as agressões. Depois de ter me dado um soco durante a noite, no outro dia resolvi dar um basta nessa situação e me dirigi à Delegacia de Defesa da Mulher, para fazer um B.O, mas apesar de ter realizado um exame de corpo delito no Instituto Médico Legal, resolvi não solicitar medida protetiva, pois ainda queria manter o casamento. Depois de alguns meses e de me convencer que essa situação nunca mudaria, resolvi me separar, desde então começaram novas ameaças”, descreve a estudante universitária.

Quando o ex-marido parou de pagar a pensão e ameaçou sequestrar a criança, J. B decidiu procurar o serviço da Defensoria Pública: “Me senti completamente amparada pelo Nudem, com atendimento e com o serviço de acompanhamento psicológico para todas as mulheres e seus filhos também vítimas de violência. Fico contente de encontrar com outras mulheres no Núcleo que também procuram ajuda e denunciam os casos de agressões. Nesse momento, meu conselho à todas as mulheres vítimas de violência doméstica é arregaçar as mangas e sair dessa redoma de agressões, independente do tipo violência. Nada importa além da sua felicidade e de sua integridade física e mental. Quando nos protegemos, protegemos os nossos filhos também”, sentencia.

Raquel e J. B dividem histórias parecidas com as 531 mulheres atendidas de abril à dezembro de 2016. Elas são em sua grande maioria jovens, com faixa etária de 26 à 35 anos de idade (40,2%), pardas (66,5%), solteiras (52,45%), com ensino médio completo (32,91%), possuem trabalho remunerado (40,87%) ou são donas de casa (39,13%). Em média, essas mulheres levam de um a cinco anos (39,9%) para realizar a denúncia e são impedidas de romper o ciclo de violência em 34,24% por dependência afetiva, 23,15% dependência familiar, 22,83% financeira e compartilham a realidade de violência com os filhos, em 82,88% dos casos.

De acordo com a defensora pública supervisora do Nudem, Jeritza Braga, “conhecer o perfil da assistida é de extrema importância porque isso determina os encaminhamentos que serão direcionados à cada caso e nos permite aperfeiçoar o nosso serviço. Por exemplo, muitas vezes essa assistida precisa da autonomia financeira para cuidar dos filhos. Em situações assim, ela é encaminhada ao Nudem para dar prosseguimento na ação de alimentos ou de execução de alimentos (quando a outra parte tem determinação judicial para pagamento da pensão e não está cumprindo)”, explica.

Ainda neste primeiro semestre, o Núcleo de Enfrentamento à Violência contra a Mulher (Nudem) e o Juizado da Violência Doméstica passará a funcionar na Casa da Mulher Brasileira. O equipamento promete ser um avanço nas políticas de enfrentamento à violência de gênero na Capital e vai dar celeridade na atuação da Defensoria Pública: “A questão das políticas públicas para as mulheres é uma eterna luta na qual nós estamos sempre buscando mais espaço. Estamos em vias de inaugurar a Casa da Mulher Brasileira. Essa é uma obra do governo federal que visa contemplar todos os equipamentos da rede de proteção da mulher em um único local. Então teremos a Defensoria Pública, o Juizado da Violência Doméstica, Núcleo do Ministério Público, Delegacia de Defesa da Mulher, Centro de Referência, Casa de Passagem. Ou seja, essa mulher terá um atendimento multidirecionado em um único lugar, diferente do que acontece hoje, onde ela vai peregrinando por todos esses órgãos e em cada atendimento ela vai contando novamente a mesma história, o que chamamos de ‘revitimização da vítima’, enfatiza.

“Apesar do lugar de vítima, de ter vivenciado uma situação de violência, a mulher não deve se colocar como vítima e deve ter uma posicionamento frente à isso, independente do que tenha acontecido à ela. Buscar autonomia, apoio e ajuda é necessário, seja dos serviços de proteção à mulher, da família, enfim, de quem possa ajudá-la nesse momento. Essa ideia de ‘briga de marido e mulher não se mete a colher’, até certo ponto é equivocada. Cada um sabe da vida que vive, cada um sabe o que enfrenta, mas ninguém está sozinho e não deve se colocar como incapaz. Essa mulher tem as próprias pernas, os próprios braços e a própria cabeça, a própria consciência. Ela pode ter uma vida, além da vida imposta, mas a vida que ela realmente quer”, dispara a psicóloga do Nudem, Leissa Feitosa.

Núcleo de Enfrentamento à Violência Contra a Mulher (Nudem)

O Nudem recebe demandas diárias que envolvem mulheres. A atuação nesta área envolve a defesa dos direitos das mulheres que se encontram em situação de violência doméstica e familiar, prestando toda a assistência, como educação em direitos, orientação jurídica, ajuizamento de ações necessárias de acordo com o caso, requerimento das medidas protetivas de urgência previstas na Lei Maria da Penha e encaminhamento para a rede de proteção existente no Estado e no Município. No núcleo, são comuns casos de ações cíveis, tais como divórcio, pensão alimentícia, guarda e reconhecimento de paternidade. Já no âmbito de questões criminais a incidência maior é de pedido de medidas protetivas contra agressores.