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Homem busca reconhecimento de filiação socioafetiva para acessar bens de pais já falecidos

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socioafetivo

Ainda criança, Luiz* viu sua vida mudar completamente. Até os cinco anos de idade, ele vivia em uma comunidade carente de Fortaleza. “Meu pai era usuário de drogas e minha mãe tinha transtornos mentais”, recorda ele. A avó paterna assumiu a criação da criança, chegando a registrá-lo em cartório. A infância foi marcada por condições precárias, levando o menino a passar boa parte do tempo na rua.

Nesse vai e vem pelos cruzamentos, ele foi visto pela mulher que se tornaria sua mãe e lhe apresentaria a uma nova família. “Ela me viu parado no semáforo, pedindo dinheiro. Perguntou onde eu morava, eu indiquei. Ela foi até minha casa e pediu para me criar, que queria me dar uma outra vida. Minha avó autorizou. Depois daí, ela me apresentou ao meu pai, marido dela, e passei a ter uma nova família”, lembra.

A vida dele, então, ganhou outros destinos: passou a ir à escola, ter uma casa mais confortável e convivência familiar. Mas o casal nunca chegou a adotá-lo formalmente. “Eles falavam que era muito burocrático colocar o sobrenome deles no meu registro em cartório, que dava trabalho. Então, permaneci com o sobrenome da minha avó biológica. Frequentei escola pública e nunca tive problema com matrícula. Todos na minha rua sabiam que eles eram meus pais de fato”, afirma.

Em 2007, a mãe de Luiz faleceu após sofrer um infarto. O pai partiu no final de 2018, pelo mesmo motivo. Como o casal não possuía filhos biológicos, Luiz, hoje com 47 anos, se viu em dúvidas sobre que direitos teria sobre os bens, por conta da falta de filiação oficial. “Não deu tempo passar nada para meu nome, oficialmente. No inventário, eu não consto como herdeiro, está tudo em posse da mãe do meu pai. A casa onde moro com minha família pertencia a ele, e havia promessa de que seria minha”, afirma.

O caso de Luiz deixa evidente uma filiação socioafetiva. A defensora pública Ana Cristina Barreto, atuante no Núcleo de Defesa dos Direitos da Infância e da Juventude (Nadij), explica que não se trata de uma adoção oficial, pois não obedeceu aos trâmites do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). “A criança foi criada por terceiros, com quem firmou laços de afinidade e afetividade. Nesse caso, coexistem tanto os vínculos socioafetivos quanto os biológicos, ainda não rompidos. Mas a filiação socioafetiva é uma situação de fato. Um estado de filho, como se filho natural fosse”, explica.

Ainda segundo a defensora pública, ao ser registrado inicialmente pela avó biológica como filho, houve um caso de “adoção à brasileira”. O termo é utilizado para designar o ato de registrar alguém, filho de outro, como se fosse seu, sem seguir todos os trâmites legais necessários. “Para que uma adoção se concretize, existem requisitos previstos em lei: decisão judicial, consentimento dos pais biológicos ou a destituição ou perda do poder familiar, consentimento do adotando (se maior de 12 anos), estágio de convivência, entre outros. É preciso passar por todo um processo para que ela venha, então, a ser concedida. A chamada ‘adoção à brasileira’ é, portanto, irregular e ilícita, tipificada como crime previsto no art. 242 do Código Penal”. A prática, ainda de acordo com a defensora, acontece até os dias atuais, em menor escala, sob o argumento de “excesso de burocracia e suposta morosidade nos processos de adoção”.

Direito ao inventário – Luiz procurou a Defensoria Pública para obter orientações sobre como proceder. Ao lado da esposa, eles foram atendidos por um defensor público do Núcleo Central de Atendimento (NCA). O objetivo dele é comprovar a filiação socioafetiva e, com isso, ser inserido legalmente no inventário da família, um processo que apura os bens e direitos uma pessoa falecida para se chegar à herança que será transmitida aos herdeiros. “Moro na casa que meu pai pretendia passar para o meu nome. Só pretendo formalizar isso no inventário, como herdeiro legítimo que sou”, afirma Luiz.

O primeiro passo é resolver a filiação. Segundo o defensor público Carlos Teodoro, supervisor das Defensorias de Sucessões, o caso é bastante particular, pois envolve comprovação de paternidade socioafetiva pós-morte. Ainda assim, há jurisprudência favorável. “Em 2016, a 3ª turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu, de forma unânime, manter uma decisão do TJ/RJ que reconheceu a paternidade socioafetiva após a morte do autor da herança. Com esse precedente, ele pode entrar com ação judicial para comprovar esse laço socioafetivo”, explica Teodoro. De acordo com o defensor público, o solicitante deve reunir provas que apontem para o vínculo afetivo entre as partes, como fotos, cartas, declarações de Imposto de Renda, matrículas escolares e o depoimento de testemunhas, tudo para demonstrar o afeto e a relação pública na convivência com os pais. “Ele tem que procurar o máximo de provas possível. Se o suposto filho tiver documentos e provas robustas, há uma boa probabilidade dele ganhar a ação”, afirma o defensor.

Já em relação ao inventário, já existe um processo sobre os bens do pai sendo elaborado. “Assim que o assistido ingressar com a ação de reconhecimento de paternidade, já pode pedir sua habilitação no processo de inventário, comunicando ao juiz sobre o andamento daquela ação e pedindo a reserva de sua parte”, detalha Teodoro. Ainda segundo o defensor, se o processo de inventário estivesse concluído, Luiz deveria pedir uma sobrepartilha, abrindo uma nova ação para ter seu nome inserido após a conclusão do processo de reconhecimento da paternidade.

Em Fortaleza, as ações relacionadas ao Direito de Sucessões, como inventário (bens imóveis) e alvará (valores em conta), são distribuídas para cinco Varas de Sucessões no Fórum Clóvis Beviláqua. Três defensores públicos atuam nas varas para prestar orientação jurídica, acompanhar os processos, participar de audiências judiciais, elaborar peças processuais, entre outras atividades.

Luiz espera conseguir o reconhecimento legal de sua filiação. “Possuo fotos e assinaturas da época escolar que podem servir de prova no processo. Também vou apresentar testemunhas. Além disso, tenho uma carta escrita à mão pela minha mãe, que podem comprovar a nossa relação familiar, sempre muito próxima e afetuosa. Minha esperança é que tudo dê certo”, espera.

*Nome fictício para preservar a identidade do assistido.