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Mais de 80% das práticas realizadas no Centro de Justiça Restaurativa da Defensoria resultaram em acordo

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estudos e pesquisa 3

Quatro em cada cinco práticas restaurativas concluídas no Centro de Justiça Restaurativa (CJR) da Defensoria Pública do Estado do Ceará resultaram em acordos de resolução de conflitos entre as partes. Os casos chegam a partir de encaminhamento da 5ª Vara da Infância e Juventude de Fortaleza. Entre os meses de abril de 2018 e 2019, foram 22 processos que resultaram em práticas restaurativas, entre os quais 18 tiveram como desfecho acordos que foram cumpridos, correspondendo a 81%.

Os dados foram coletados pelo Núcleo de Estudos e Pesquisas (Nuesp) da Escola Superior da Defensoria Pública (ESDP), que monitorou 43 processos encaminhados pelo Poder Judiciário e finalizados no CJR. Foram 61 adolescentes em conflito com a lei atendidos. Dentre os processos concluídos, 21 foram devolvidos à justiça pela falta de voluntariedade das partes e/ou insegurança na promoção do encontro promovido pela prática restaurativa.

“Vejo como resultados de um trabalho sério que tem um grande potencial transformador e de resolução dos conflitos”, classifica a defensora pública Érica Albuquerque, que coordena o CJR. Érica pontua que o objetivo da justiça restaurativa é responsabilizar o infrator e proteger a vítima, com a capacidade de “contagiar as pessoas com o resultado que ela é capaz de alcançar”. “O CJR surgiu a partir da união de desejos pela modificação, de tentar trazer uma nova forma de resolver os conflitos no sistema de justiça infracional. A resposta que buscamos nas práticas não é só para um processo. Na verdade, ela impacta na sociedade como um todo, pois atinge várias vidas e repercute lá fora. As pessoas entram aqui e saem outras, há um processo de transformação na vida delas”, afirma a defensora pública, atuante na 5ª Vara da Infância e Juventude de Fortaleza.

O Centro de Justiça Restaurativa foi criado em abril de 2018 e é uma estrutura dentro do Núcleo de Atendimento ao Jovem e Adolescente em Conflito com a Lei (Nuaja). O trabalho é realizado em parceria com o Instituto Terre des hommes Lausanne (TDH) no Brasil, que oferece suporte às atividades por meio de supervisão, orientação, estudos de caso e co-facilitação dos casos mais complexos. As atividades são desempenhadas também em parceria com Tribunal de Justiça do Estado do Ceará, Vice-governadoria do Ceará, Ministério Público do Estado do Ceará, Delegacia da Criança e do Adolescente (DCA) e Pastoral do Menor (CNBB).

Retrato do assistido – O Nuesp também conseguiu mapear a realidade dos jovens que passaram pelo CJR no período avaliado. Dos 61 adolescentes aos quais se atribui ato infracional e foram atendidos, a maioria é formada por homens (41 jovens), havendo predominância de jovens com 15 anos de idade (17 deles). A pesquisa revelou ainda a situação educacional dos assistidos: 40 adolescentes estavam matriculados em escolas na época do atendimento. Do total, mais da metade (34 adolescentes) possui o Ensino Fundamental Incompleto e não trabalha (48). A pesquisa traz ainda o recorte geográfico: a maior parcela é natural de Fortaleza (51), mas também há jovens do interior, como Boa Viagem, Crateús, Itapipoca, Russas, Caucaia e Banabuiú, e até de outros estados.

cjr 1 (1)O consultor técnico do Instituto Terre des hommes Lausanne (TDH), Carlos de Melo Neto, lembra que o perfil dos jovens atendidos é determinado pelas próprias demandas que são encaminhadas pelo juiz, que identifica, nos casos concretos, elementos que podem passar pelas composições restaurativas. “E isso só se confirma quando as facilitadoras do CJR conversam com as partes e veem se é seguro, se há voluntariedade. (Os casos) Também podem vir da delegacia, que encaminha para o juiz e sugere a prática restaurativa”, explica. Carlos pondera ainda que o resultado do perfil dos atendidos também é consequência da vontade deles de passar pelas práticas. “No dia a dia, trabalhamos com pessoas. São elas que vão dizer se podemos trabalhar ou não. O essencial é saber se as pessoas são voluntárias e se é seguro”, completa.

O CJR conta com duas facilitadoras que acompanham os adolescentes que cometeram ato infracional e as vítimas (entenda como funciona o processo abaixo). A facilitadora Lívia Cavalcante afirma que, entre o acolhimento inicial e a elaboração do acordo, é preciso que todo as etapas sejam restaurativas. “Desde o atendimento mesmo, com respeito, até pensar como as pessoas envolvidas vão se locomover, já que muitas trabalham ou têm dificuldades financeiras de vir até aqui. Por isso, já fizemos círculos restaurativos nos territórios, como escolas, entre outros. Depende de cada caso e da disponibilidade das pessoas”.

A facilitadora pondera que, até mesmo nos casos em que o processo é retomado na justiça comum, antes houve início da prática restaurativa para identificar as características do caso. “Não é porque o processo voltou para a justiça comum que a prática fracassou aqui no CJR. É porque essa resposta não é adequada para aquele conflito”, destaca. “Nós não nos compreendemos como um adversário do processo judicial. Não é a prática restaurativa contra o processo. Mas sim o que pode dar melhor resposta às pessoas no caso concreto”, acrescenta o consultor Carlos de Melo Neto.

Um novo começo – Na recepção do CJR, Lúcia* aguarda o início da etapa de círculo, em que serão firmados acordos para responsabilização do filho dela, Jeferson*, 16 anos. O jovem já havia passado pelo pré-círculo (veja abaixo as etapas da prática restaurativa), após o processo de acusação contra ele ser encaminhado pela justiça. Por questões de voluntariedade, a parte ofendida optou por não participar presencialmente do círculo. Nesta fase, a mãe de João representou a comunidade de apoio do adolescente. Ela segurou firmemente a mão dele e os dois entraram na sala. Três horas depois, os dois assinaram o acordo para recomeçar uma nova vida.

“Eu estou me sentindo aliviada e agradecida pela oportunidade que passamos aqui. A nossa convivência é boa e procuraremos melhorar para que não venha acontecer mais esse erro. Tenho a dizer para todas as mães que nunca desistam dos seus filhos. Mesmo nas dificuldades, temos que passar por cima e tentar. Eu tive cinco filhos, mas já perdi um deles em um assassinato. Mas vou lutar pelos outros. Faço isso pelo amor que sinto por meus filhos”, diz Lúcia ao fim do círculo.

Comovido com a fala da mãe, Jeferson se diz aliviado com a experiência restaurativa no CJR, em que ele foi levado a pensar sobre o conflito que lhe levou a ser responsabilizado. “Estou me sentindo muito bem, aliviado, eles sabem conversar e explicam bem, dão oportunidade para a pessoa não fazer mais aquilo e seguir em frente de cabeça erguida”, afirma. O jovem revela o sentimento de gratidão à força da mãe. “Sonho em ter oportunidades para ajudar minha família e construir uma vida”. “Eu sonho que ele consiga alcançar os objetivos dele, pra viver uma vida sossegada, com dignidade”, completa Lúcia.

 

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Segundo a defensora pública Érica Albuquerque, o objetivo da Justiça Restaurativa é resolver conflitos reais a partir da horizontalidade. “Se um adolescente pratica um ato infracional, no processo da justiça tradicional ele será responsabilizado e pode ganhar uma medida socioeducativa. Na justiça restaurativa, não se olha para o passado apenas para resolver aquilo. O olhar para aquele fato é para que nós possamos enxergar as pessoas no presente. E a partir daí, no mesmo grau de horizontalidade, construímos tudo e vai ser decidido como vamos continuar e planejar um futuro para que todos se sintam bem. De que forma o dano pode ser reparado, de que forma sentimentos e necessidades identificados serão acolhidos por todos. E isso conseguimos muitas vezes resolver os reais conflitos, não apenas o conflito aparente”, exemplifica.

Desafios – A Defensoria Pública acompanha todos os processos que tramitam no CJR. As petições são encaminhadas ao Judiciário para informar quando são firmados acordos, quando há descumprimento ou para requerer mais tempo para trabalhar o caso. A legislação brasileira não determina prazo acerca da resolução dos casos atendidos pela justiça restaurativa. No Ceará, os atores do sistema de justiça pactuaram um prazo médio de 60 dias para realizar as práticas, tempo que pode ser ampliado a partir de solicitação da Defensoria Pública ao juiz.

Visando tornar o trabalho do CJR ainda mais acessível pela população, o projeto busca sempre o diálogo junto ao sistema de justiça. “Precisamos estar em constante articulação com esse sistema de justiça: Poder Judiciário, Ministério Público, Delegacia. Já fizemos várias reuniões para orientar sobre justiça restaurativa, que contribua com a visualização dos casos”, informa Érica Albuquerque. Ele destaca que, no início, apenas crimes de menor potencial ofensivo eram atendidos, mas com o desenvolver das práticas, o leque de possibilidades foi ampliado. “Atendemos lesão corporal, grave ameaça, estupro de vulnerável e até tentativa de homicídio. Não é mais a gravidade do ato o limitador para encaminhamento do caso ao CJR”, explicita.

O consultor técnico Carlos de Melo Neto acredita que a justiça restaurativa é um tema em expansão, embora muitas pessoas ainda não conheçam o que ela traz. Desde 2011, a TDH realiza o debate sobre essa questão no Ceará. E foi na parceria com a Defensoria Pública que o instituto internacional encontrou uma maneira eficaz de difundir uma nova visão sobre justiça. “Entendemos que precisamos mudar. A sociedade costuma pedir por medidas mais graves quando enfrenta o tema da violência. E do nosso ponto de vista, observando a experiência no Brasil e em outros países, medidas mais pesadas não resolvem o problema, mas pioram. A justiça restaurativa parece como uma outra via, uma outra forma de lidar com o problema, mais humana, mais transformadora e, portanto, mais viável. O CJR é a concretização desse projeto. Compreendemos que nosso papel é de apoio ao projeto da Defensoria Pública. A perspectiva é só crescer, em uma parceria que tem dado resultados, o desafio é expandir o que já começou”, defende Carlos.

Para pesquisadora e coordenadora do Nuesp, Grazielle Albuquerque, além de revelar o retrato, os dados revelados na pesquisa norteiam os projetos da Defensoria Pública no que tange aos mais diversos órgãos de atuação. “O esforço empreendido pelo Núcleo de Estudos e Pesquisas é criar uma cultura de uma Defensoria que se conhece. Então, em vez de apenas arquivar dados em planilhas e fichas, você começa a olhar para o que essa informação diz. Essa cultura de dados, que vem à reboque do esforço de sistematização, é o grande ganho”.

Serviço
Núcleo de Atendimento ao Jovem e Adolescente em Conflito com a Lei (Nuaja)
Rua Tabelião Fabião, 114 – Olavo Bilac – Fortaleza
(85) 3273-6435 / (85) 3278-1330