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#OrgulhoLGBTQ+: Internas transexuais do sistema prisional sonham com futuro de direitos

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A Região Metropolitana de Fortaleza dispõe de uma unidade prisional específica para gays, bissexuais, travestis e transexuais (GBTT) que respondem a processos ou aguardam julgamento. Criada em 2016, a Unidade Prisional Irmã Imelda Lima Pontes abriga 246 presos (dados do início de junho de 2019), com capacidade para 144 vagas. O público GBTT é a segunda maior parcela entre os apenados da unidade. A unidade prisional é destino também de idosos, indivíduos que cumprem pena a partir da Lei Maria da Penha (sem associação a outros crimes) e pessoas com deficiência, separados pela Secretaria de Administração Prisional do Estado do Ceará (SAP).

O espaço não escapa ao contexto de superlotação comum ao cenário prisional brasileiro. A unidade, porém, contrasta das demais em singularidades, como a existência de uma maior habitabilidade e capricho – que deveria ser comum a todas: há um viveiro de pássaros, uma horta medicinal e até um salão de beleza – este todo mantido com produtos doados por familiares das presas. Tudo cuidado e conservado por meio do trabalho de internos e internas.

 

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O Irmã Imelda tem a rotina semelhante a de qualquer outra do sistema prisional cearense. A unidade, no entanto, não nasceu apenas de um ato administrativo. Surgiu a partir de pressão de internos e internas LGBTs que até então cumpriam pena na Casa de Privação Provisória de Liberdade Professor Jucá Neto (CPPL III), em Itaitinga, em 2013. Em um primeiro momento, buscou-se uma área específica dentro da própria CPPL III e nasceu o projeto Meninas que Encantam – que ganhou Prêmio Innovare 2017 –  como lembra o agente penitenciário Marcos Karbage, à época diretor e um dos idealizadores do projeto. O público era acompanhado de perto em rodas de conversa, fazia atividades como teatro e dança e adotou-se medidas como acabar com a obrigatoriedade do corte de cabelo, “sempre reconhecendo a presença e a vulnerabilidade da população gay, travesti e transexuais em uma unidade masculina”.

O projeto da unidade destinada só veio em 2016. A interna Paula Oliveira, 23 anos, participou de todo esse processo. “A partir de um projeto cultural, mostramos ao Estado as nossas necessidades e o preconceito que sofríamos estando em celas comuns. Houve humanidade ao nos trazer para cá, um prédio que era um antigo presídio militar desativado. Lutamos e conseguimos. Isso mostra como é preciso resistir. Não devemos ser punidas além do cumprimento da pena. Sem luta não há direitos”, argumenta Paula.

O defensor público Emerson Castelo Branco acompanha os processos de internos e internas do Irmã Imelda e aponta um contexto social com características próprias, dentro do sistema. “A maioria dos delitos aqui está relacionada à questão das drogas. Também percebi muitos presos/presas com a quebra de vínculo com a família. Sempre é muito importante para a Defensoria Pública uma proximidade com a família, porque muitas vezes nós precisamos de documentação, como comprovante de trabalho, para ingressar com algum benefício para quem tem esse direito. E a família é quem pode fornecer”, explica.

O contexto de superlotação da unidade, para o defensor público, está ligado a uma lógica de encarceramento. Segundo ele, é preciso verificar até que ponto existem situações que permitam o cumprimento de penas alternativas ao regime fechado. “Nós verificamos a realidade de cada preso do Irmã Imelda. Nós temos que saber que pessoas podem receber a liberdade. A liberdade provisória é uma regra, sempre você tem que evitar a prisão preventiva, porque ela antecipa a pena. E se a pessoa for absolvida futuramente, essa antecipação da pena é irreparável. É um dano grande”, aponta.

 

 

É neste contexto – marginalizadas pela condição prisional e pelos contextos sociais que viveram – que a Defensoria conversou com as internas Natália, Shakira e Laynê, três mulheres em diferentes etapas de reconhecimento, mas com histórico de batalhas pessoais e de garra para superá-las. Em comum: a identidade de gênero feminina, que se contrapõe ao nome masculino grafado no documento oficial. Para elas, oficial mesmo é a exclusão de direitos que as acompanha desde antes. Mesmo enfrentando uma série de dificuldades ao longo da vida, conseguem – cada uma a seu estilo – encontrar forças para reafirmar sua cidadania.

Uma mulher em constante transformação – O gosto pela estética foi o combustível que levou Natália Dantas, de 27 anos, aos salões de beleza. Passou por vários deles “de forma autônoma”. “Fiz cursos na área, concluí o Ensino Médio, mas nunca consegui grandes oportunidades”, lamenta. Ela atribui a falta de propostas profissionais ao preconceito. “Se eu ia buscar emprego em outro espaço, viam que eu era transexual e já me olhavam torto. Senti isso na pele”, disse.

Dentro de casa, a família ficou dividida ao perceber que Natália era do gênero feminino. O pai e o irmão, segundo ela, a rejeitaram. Por outro lado, a mãe apoiava como podia. “Com 14 ou 15 anos eu me percebi diferente. Fui me aproximando de outras pessoas LGBTs e vi que aquilo não era estranho. Era normal!”, relembra. Não suportou muito tempo essa divisão e saiu de casa. No caminho, esbarrou no crime. “Acabei me envolvendo com coisas erradas e fiz um assalto. Estou aqui cumprindo minha pena e sei que nada disso é para mim”. Segura nas palavras, ela relata que falta pouco mais de um ano para sair do presídio, de onde, segundo ela, sairá transformada. “Aqui conheci meu parceiro. Ele é cadeirante, está em outra ala, mas nos conhecemos aqui e estamos juntos. Queremos construir uma vida fora, longe de coisas erradas e com dignidade”, projeta.

IMG_2237De dentro da unidade, Natália toma hormônios para continuar sua transição. Segundo ela, seria necessário tomar cinco tipos de hormônios, mas no momento ela só consegue tomar três, que são comprados pela mãe dela e entregues na unidade. “Divido até com outras meninas aqui, que não têm acesso por falta de condições”, conta. As consultas com um endocrinologista foram obtidas a partir de encaminhamento do médico da unidade. “Mas não é fácil conseguir consulta externa”, acrescenta.

Histórico de direitos violados – Os cabelos pretos e compridos revelam a personalidade vaidosa de Shakira Martins, 28 anos. Nem de longe lembram a jovem que aos 13 anos saiu de casa, em Maracanaú, porque foi rejeitada pela família ao se assumir travesti. O conflito familiar era mais um na vida da adolescente. “Não concluí o Ensino Médio. Na escola sofria muito bullying, os meninos mexiam comigo e eu não sabia me defender. Era horrível”, diz.

Sem acesso à educação e rejeitada pela família, Shakira chegou a trabalhar com costura em confecções de Fortaleza. Mas, aos 17, ela decidiu ir para São Paulo. “Lá conheci outras travestis que me incentivaram a colocar prótese nos seios, tomar hormônio e me tornar a mulher que eu queria ser”. Foi na capital paulista que ela se envolveu com drogas e “quase fui morar na rua”, conta.

Captura de tela de 2019-06-26 11:30:28Há quase um ano como presa provisória, aguardando julgamento, Shakira conta que tem dois sonhos após deixar a prisão. Um deles é retificar o nome e o gênero nos documentos, mesmo temendo que a passagem pelo sistema atrapalhe. “Não sei se a lei está ao meu lado, porque terei antecedente criminal. Espero que não, porque queria ter meu verdadeiro nome”.

Shakira externa um receio comum a muitas internas entrevistadas, assim como de quem possui passagem pela Polícia, de que isso atrapalhe a retificação de nome social e gênero, já que o processo exige uma série de documentações, dentre elas, a certidão de antecedentes criminais. Entretanto, segundo a defensora pública Sandra Moura Sá, supervisora do Núcleo de Direitos Humanos e Ações Coletivas da Defensoria (NDHAC), isso não configura impedimento para a alteração. “O direito ao nome é um direito ligado à personalidade. Como é algo inerente a nossa essência, deve ter um rito rigoroso para alteração. A exigência da certidão de antecedentes criminais é importante para que seja comunicado ao juízo processante que a pessoa retificou o prenome e gênero. Mas não significa que a pessoa que responda a processo será impedida de fazer a retificação”, explica a defensora.

IMG_2240Um novo sonho – “Lá fora eu me reconhecia homem gay, mas aqui dentro me encontrei”, responde Lainê dos Santos, 22 anos, ao ser perguntado sobre como ela se identifica. Ela conta que passou a se compreender melhor ao conviver com outras transexuais e travestis. “É uma maneira de ser que passei a reconhecer em mim também. Nas conversas com a psicóloga, que nos acompanha aqui na unidade, passei a me entender mais e a me transformar”, afirma.

Apesar de não encontrar resistência na família, desde cedo, Lainê diz que viveu “solta no mundo”, na casa de amigos e conhecidos. “Gostava muito de sair, me divertir, então estava pouco em casa”, justifica. Não concluiu os estudos, diz que sofria preconceito no colégio porque, segundo ela, tinha um jeito afeminado, atraindo piadas e agressões de estudantes. Abandonou a escola no 1º ano do Ensino Médio.

Apesar do pouco tempo de estudo formal, Lainê encabeça iniciativas importantes dentro da unidade. O salão de beleza está sob sua responsabilidade, com auxílio de Renata. “Nós organizamos os atendimentos. É um importante espaço para termos nossa feminilidade, e também conseguimos remir a pena com um trabalho”. O futuro vislumbrado, porém, não está entre escovas, secadores e esmaltes. “Quero ser física. Estudar muito, descobrir coisas novas. Sou curiosa, quem sabe daqui um dia eu não vire uma cientista”, projeta.

Frases de orgulho

“Acho necessário mostrar resistência. Eu tenho orgulho da maturidade que adquiri depois de todas as experiências que eu tive”,
Natália, 27 anos, mulher trans

“Temos que lutar pelo nosso direito de ser. Eu me orgulho pela minha força de vontade, de me tornar o que sou e de batalhar para ser alguém melhor a partir daqui”,
Shakira, 28 anos, mulher travesti

“Acho que temos que lutar por igualdade. Ainda não construí muita coisa, sou muito jovem. Mas espero me orgulhar muito do viverei”,
Laynê, 22 anos, mulher trans

“Houve humanidade ao nos trazer para cá, um prédio que era um antigo presídio militar desativado. Lutamos e conseguimos. Isso mostra como é preciso resistir. Não devemos ser punidas além do cumprimento da pena. Sem luta não há direitos”,
Paula Oliveira, 23 anos, mulher trans