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Prova Testemunhal em Xeque: uma falsa lembrança pode levar inocentes a prisão

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juri

Gladstone Rocha Campos, hoje com 59 anos, não fazia ideia que uma discussão banal no seu comércio fosse lhe causar um processo criminal. Em 2005, ele precisou fazer um boletim de ocorrência contra um rapaz que entrou no seu bar, localizado no Conjunto Ceará, bebeu algumas cervejas e se recusou a efetuar o pagamento. Os dois discutiram, houve agressão física e o caso foi parar na delegacia. Eles participaram de uma audiência de conciliação e o processo foi arquivado. Pouco tempo depois, esse agressor foi morto por dois homens que estavam em uma moto.

As testemunhas do homicídio afirmaram que os assassinos estavam de capacete e não conseguiram reconhecer quem pilotava a moto e quem efetuou os disparos, mas perceberam algumas características como a cor da pele, a altura e a faixa etária. Durante a investigação desse crime, a polícia localizou no sistema esse boletim de ocorrência e chamaram Gladstone para prestar depoimento e participar de um reconhecimento.

“Foi quando o caos na vida desse senhor começou”, conta a defensora pública da 5ª Defensoria do Júri, Beatriz Fonteles Gomes Pinheiro, responsável pelo atendimento. “Para participar do tal reconhecimento pediram para que ele colocasse um capacete e entrasse na sala. Tinham outros presos no canto da parede algemados, mas o foco da atenção estava nele. Um procedimento totalmente irregular do que prevê o Código de Processo Penal e assim ele foi apontado como culpado de uma coisa que nunca fez”, esclarece a defensora.

O caso demorou 14 anos para ter um desfecho. Enquanto isso, Gladstone ficou respondendo por um homicídio que não cometeu e sem nem saber ao certo o que tinha acontecido. “Por muitos anos escondi tudo isso da minha família, porque eu não queria que ela carregasse aquele fardo e também eu pensava que as coisas seriam esclarecidas logo, mas passou uma eternidade. Quando fui para as audiências no Fórum, eu não imaginava que ainda estava passando por tudo aquilo. Pensava que estava num pesadelo, porque essa história me torturava. Quando eu lembro de toda aquela angústia ainda sinto um aperto no peito. Foi muito sofrimento”, relembra.

O caso chegou até a Defensoria em um segundo momento, depois que mídias contendo depoimentos testemunhais foram extraviadas e o juízo precisou ouvi-las novamente. “Nessa audiência de instrução, que acontece antes do réu ser apresentado ao júri, já tínhamos a convicção de que não tinha sido ele, e a medida que o depoimento ia avançando, você era capaz de perceber que ele estava fazendo um esforço enorme para relembrar aonde estava naquele dia e o que estava fazendo. A tensão era tão grande que quando o juiz disse que ele estava liberado, ele simplesmente desmaiou”, relembra a defensora pública Beatriz Fonteles.

Após a audiência, a Defensoria Pública conseguiu desqualificar com provas físicas os depoimentos da época. Dessa forma, o processo foi arquivado. “Nunca foram atrás de outro culpado. A sociedade perde duas vezes: um inocente que ficou respondendo por um processo de homicídio por anos e o verdadeiro culpado que nunca foi identificado”, lamenta Beatriz.

Casos assim não são incomuns. Na atuação da Defensoria na seara criminal é comum encontrar provas e inquéritos que se baseiam em depoimentos das testemunhas, sem levar em consideração outras linhas de investigação, e muitas vezes, se tornam as únicas ligações entre os réus e os fatos. “Uma prisão não pode se sustentar apenas pelas provas testemunhais. É preciso uma investigação mais detalhada para que se justifique o encarceramento de alguém. Mas infelizmente percebemos que as contradições são apresentadas e discutidas já na fase final do processo, quando, muitas vezes, o réu permaneceu por vários anos preso e só depois é constatado que aquela pessoa era inocente. Quando nos deparamos em casos assim, os sentimentos são contraditórios, porque ficamos felizes com o resultado final, mas nenhum inocente merece ficar preso por um crime que não cometeu. Isso é desumano”, explica a defensora Glaiseane Lobo Pinto de Carvalho, também da 5ª Defensoria do Júri.

A defensora acompanhou na última semana o caso de Luiz*, preso desde setembro de 2017 por um crime que aconteceu cinco anos antes e que permanece até hoje sem solução. Em 2012, Luiz era dono de uma fábrica de roupas no bairro Vila Velha e um dos seus empregados foi assassinado ao caminho do trabalho. O pai da vítima , emocionado no momento do depoimento, relacionou as características físicas dos autores do crime com as de Luiz. O suficiente para incriminá-lo.

Durante as alegações finais do processo, a defensora pública  Glaiseane Lobo Pinto de Carvalho mostrou contradições nos depoimentos e a necessidade de ter sido iniciada uma nova linha de investigação, uma vez que haviam indícios de que o crime ocorreu por acertos de contas, devido a um roubo em Morada Nova. “A vítima teria envolvimento nesse roubo que aconteceu anos atrás no interior e teria mentido, informando que a Polícia teria apreendido as armas do crime, quando, na verdade, as armas teriam ficado com ele. O próprio pai da vítima menciona essa versão, mas a polícia não diligenciou para ouvir outras pessoas durante o inquérito. O artigo 155 do Código de Processo Penal não permite que o juiz fundamente a sua decisão apenas em informações colhidas apenas no inquérito policial e não confirmadas em juízo, visto que, nesta fase não há o crivo do contraditório e da ampla defesa. E foi nisso que nos baseamos para buscar a absolvição de Luiz”, esclarece a defensora.

A sessão do tribunal do júri aconteceu no último dia 7 de março quando Luiz foi absolvido por não existirem indícios suficientes que comprovasse a autoria ou a participação dele no crime, mas ainda permanece no Centro de Execução Penal e Integração Social Vasco Damasceno Weyne, em Aquiraz, na Região Metropolitana de Fortaleza, aguardando alvará de soltura.

A psicóloga da Defensoria Pública do Estado do Ceará, Andreya Arruda, explica que as memórias falsas existem porque, ao contrário do que se prega o senso comum, o cérebro não funciona como uma câmera fotográfica que registra tudo da maneira exata que acontece. Ela aponta que muitas vezes pessoas necessitam de uma fazer uma (re)construção do fato no passado, podem existir informações armazenadas como verdadeiras que, no entanto, não condizem com a realidade, por uma série de fatores como pressão, medo, confusão, estresse.

“Uma das primeiras interlocuções da Psicologia com o Direito considera que o testemunho depende de vários fatores, dentre eles a forma como o indivíduo percebeu o fato, como armazenou na memória, como essa memória pode ser evocada, a forma que quis expressar e a forma como realmente se expressou. Além dos lapsos de memória, devemos considerar as falsas memórias que podem acontecer, sejam elas voluntárias ou involuntárias, e que às vezes ainda ocorrem por mecanismos de defesa ”, esclarece Andreya Arruda.

Pesquisa – Por vivenciar casos assim que a defensora Lara Teles resolveu pesquisar a prova testemunhal na sua tese de mestrado na Universidade Federal do Ceará, “Standards Probatórios e Epistemologia Jurídica: Uma proposta interdisciplinar para a valoração do Testemunho no Processo Pena”. Na pesquisa, ela buscou evidenciar a necessidade de modificar o valor que se dá para a prova testemunhal e do reconhecimento de pessoas no curso do processo penal. Segundo pesquisa do Ministério da Justiça e do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), a prova testemunhal compõe a solução de 90% dos casos, enquanto o reconhecimento de pessoas é mencionado como bastante para fundamentar uma condenação em 77% dos casos. A defensora esclarece ainda que é por trás desses números que há a alta probabilidade de acontecer erros.

No Brasil, não há dados sistematizados sobre condenações revistas. No entanto, conforme dados do organização americana Innocence Project, que se dedica a inocentar pessoas presas injustamente por causa de erros na condução da investigação, a identificação errônea por testemunhas oculares é o fator mais frequente em todas as condenações erradas que foram revisadas pela organização. De acordo com a organização, 72% das condenações revistas pelo projeto haviam sido fundamentadas em depoimentos testemunhais equivocadas, ou seja, de cada quatro pessoas, três inocentes haviam sido sentenciadas com lastro em prova testemunhal. O Instituto Innocence esteve recentemente no Ceará, em reuniões com a Defensoria, e acompanha um caso que devem ter desfecho similar.

Nos demais casos, a organização aponta que 47% envolveram erros relativos à má utilização de perícias científicas, seguido de 27% com base em falsas confissões e 15% concernentes ao uso de informantes da polícia. A soma é superior a 100%, pois em algumas situações envolveram mais de uma categoria probatória equivocada.

“Mesmo os dados serem provenientes do sistema criminal norte-americano, esse cenário se reproduz também na realidade brasileira, tendo em vista que as causas desses erros se repetem e estão  relacionadas às más práticas nos depoimentos forenses e no reconhecimento de pessoas. No final das contas, quem vai devolver esse tempo a estas pessoas que ficaram presas ou respondendo por um crime que não cometeram? Como é que vou provar que o reconhecimento dessa pessoa foi sugestionado? Como reparar um dano psicológico de um senhor que ficou 14 anos respondendo um processo de homicídio? Não tenho respostas para essas perguntas, não temos como ter o controle do que acontece nas delegacias, mas o nosso objetivo aqui é combater as injustiças, para que pessoas inocentes não sejam condenadas simplesmente por existir dúvidas ao longo do trâmite processual”, questiona Lara Teles.

Dados do projeto Tempo de Justiça apontam que apenas 25% dos homicídios tem autoria esclarecida, ou seja, em uma média de 2000 assassinatos, apenas 500 a Polícia encontra os supostos acusados. A defensora pública Gina Moura, que atua na proteção das vítimas de violência com o programa Rede Acolhe, aponta que há também outros fatores que contribuem para que as investigações não prosperem e que podem levar inocentes às prisões. Enquanto a vítima e testemunha não estiverem seguras o suficiente para contribuírem com a investigação, enquanto a polícia não estiver preparada e equipada para lidar com esta investigação e enquanto não tivermos o amplo acesso ao direito de defesa e contraditório, teremos resultados aquém do que almejado. Vamos fazer cumprir a lei no que diz respeito à proteção dessas famílias. Em termos de segurança pública, percebemos hoje uma preocupação muito maior com a punição e repressão do que com a proteção dessas vitimas. E isso está dentro do pacote de prevenção à criminalidade. Se preocupa tanto com a repressão e punição do infrator, mas não se preocupa com a proteção das pessoas, dentre elas as que sofreram de forma significativa com o crime”, lamenta.