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Quase 90% dos parentes de referência que buscam a Rede Acolhe são mulheres

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Mães. Mas também irmãs, avós, esposas, companheiras, tias e sogras são os familiares que mais buscaram a Rede Acolhe da Defensoria Pública do Estado do Ceará, projeto criado em 2017 para atender às vítimas da violência em Fortaleza. Naquele ano, Fortaleza era considerada a sétima cidade mais violentas do mundo, segundo relatório produzido pela ONG mexicana Human, Seguridad y Paz, por conta dos altos índices de homicídios. A sociedade cobrava respostas e amparo. A Rede Acolhe é criada, no âmbito da Defensoria Pública do Estado, por sugestão da Comitê de Prevenção de Homicídios da Assembleia Legislativa do Ceará, com intuito de trabalhar a assistência integral a essas vítimas e seus familiares.

Este recorte de gênero prevaleceu nos 89,08% dos casos atendidos entre junho de 2017 a junho de 2019 pelo programa. Estas mulheres são as parentes de referência dos 230 casos de violência acompanhados, desde a criação do programa, como explica o coordenador Thiago de Holanda. “Em geral, essas mulheres estão em uma situação de extrema vulnerabilidade e isso se pode vir a se aprofundar e até ocasionar violência para outros familiares, como demais filhos, sobrinhos e parentes, que podem estar ameaçados”. Todas essas mulheres buscaram na Defensoria Pública o acesso aos seus direitos e um amparo do Estado para seguir em frente. As informações seguem pequenas variações anuais: eram mulheres em 79% dos casos atendidos em 2017 (julho a dezembro); 94% em 2018; e 90% em 2019 (janeiro a junho). As informações integram o relatório do Núcleo de Estudos e Pesquisas (Nuesp) da Escola Superior da Defensoria Pública (ESDP).

A Rede Acolhe integra uma rede intersetorial que busca diminuir a revitimização e os danos causados pela violência, reduzindo os potenciais de ocorrências de novos Crimes Violentos Letais Intencionais – CVLI’s. As famílias estão inseridas em contextos territoriais diferentes então a individualidade precisa ser acolhida. A psicóloga da Rede Acolhe, Jéssica Cavalcante, explica a atuação. “Por exemplo, dentro do sistema de justiça, muitas vezes, estes membros da família são vistos apenas como ponte para chegar no autor dos crimes. A Rede Acolhe atua na proteção destes familiares e também na assistência jurídica e psicossocial”, salienta.

Joana* procurou a Rede Acolhe em maio de 2018 em busca de assistência jurídica (criminal e cível), bem como apoio psicossocial e de saúde. A irmã mais nova foi vítima de feminicídio, cometido pelo namorado, em 2018. “A irmã da vítima procurou a Defensoria Pública no intuito de obter informações processuais sobre o caso, então foi orientada a procurar a Delegacia responsável e indicar testemunhas que pudessem esclarecer o fato e suas circunstâncias. Na mesma data de seu atendimento, apresentamos em juízo a Certidão de Óbito da vítima, e cobramos maior agilidade nos expedientes judiciais. Após o oferecimento de denúncia pelo Ministério Pública, a Defensoria se habilitou nos autos como assistente de acusação”, explica a defensora pública Gina Moura. Além deste fato, toda a rede foi acionada para amparo das questões necessárias àquela família.

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Este é uma dos poucos casos de feminicídio que o programa recebeu. Embora apareça em crescimento no ano de 2018 – dos 115 casos registrados, 39 são de vítimas mulheres, o que denota um crescimento de CLVI contra mulheres na cidade – são os homens, jovens as vítimas mais recorrentes: dos 230 casos recebidos pelo programa, 172 das vítimas são homens, representando 74,78% do total. “A maioria das vítima dos homicídios no Brasil são jovens negros, do sexo masculino, entre 17 e 20 anos e moradores de áreas periféricas. A Rede Acolhe abrange uma amostra aleatória, sobretudo, da rede de assistência, onde a maior expressiva de casos tem este perfil, mas há ainda feminicídio, crimes de ódio, violência institucional, ações de grupos armados, abusos e expulsões. Isso varia, mas o perfil continua sendo o mesmo: o jovem negro da periferia”, explica Thiago de Holanda.

Em outubro de 2019 fez um ano que Ivone* perdeu o filho de 22 anos assassinado por seis tiros, próximo a sua residência. “Depois que ele morreu, não tenho mais vontade de nada. Ele me faz falta demais, me ajudava muito em tudo. Eu tenho problemas de saúde, ele que cuidava de mim, me levava no médico. Meu filho era a minha vida. Um rapaz novo, fazíamos muitos planos. Meu caçula”, relembra. No dia do incidente, Ivone estava trabalhando quando recebeu a notícia. “Eu olhava e não acreditava que era o meu filho que estava ali morto. Chamei por ele três vezes, uma policial me acompanhou e eu perguntei se ele estava morto e ela balançou a cabeça dizendo que sim. Eu abro o guarda-roupa dele, beijo as roupas, inclusive a que ele estava vestido no dia que morreu. Eu abraço e converso, questionando porque ele fez isso comigo, se tinha prometido que não iria me abandonar. A perda de um filho é a pior dor. Não desejo para ninguém. Lembro dele em todos os momentos, todos os dias”, se emociona.

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Ivone procurou a Rede Acolhe para ter assistência jurídica e psicossocial, além do atendimento periódico com o defensor público. Hoje ela é acompanhada pela equipe e tenta ressignificar essa dor. “Essa mulher é, em grande medida, a mãe que leva consigo o maior padecimento, não só do ponto de vista emocional, de cuidado, mas do ponto de vista socioeconômico. Ela, geralmente, tem outros filhos e traz toda essa bagagem de sofrimento, da responsabilidade que ela assume com a perda do familiar. Além de passar pelo luto, ela tem a responsabilidade de estar a frente de todas as questões que não só a envolvem, como envolvem o contexto familiar como um todo. Em grande medida (des)orientada pelo medo e em outros casos, poucos, o que nos surpreende é sua coragem e destemor diante do sentimento de injustiça”, explica Gina Moura.

Tipos de violência – A pesquisa traz um recorte em relação às violências vividas e denunciadas pelas famílias que buscam a Rede Acolhe. Em uma perspectiva geral, homicídios são maioria, totalizando 135 ocorrências (58,69%) dos 230 casos. Em segundo lugar, ameaça de morte com 26 ocorrências (11,30%) e, em terceiro, tentativa de homicídio, totalizando 25 ocorrências (10,86). O estudo revela ainda questões como despejos forçados, violência institucional, feminicídio e desaparecimento.

Responsável pela pesquisa, a jornalista e cientista política Graziele Albuquerque destaca que os dados das violências demonstram uma variação, apesar de homicídio estar em destaque. “Os tipos de crime apresentam uma mudança contextual, todos os anos o homicídio ganha, no entanto, em 2019, por exemplo, o ranking em relação aos casos de violência institucional aumentou. Em 2018, você pode verificar um aumento em relação aos despejos, os deslocamentos forçados, então, apesar do recorte, é possível observar as mudanças”. Estas mudanças indicam a dinâmica da própria segurança pública na cidade.

A pesquisa exploratória possibilita o mapeamento do campo que não comumente é diagnosticado dentre as instituições de justiça, como explica. “Criar uma cultura institucional de olhar para dentro da Defensoria Pública e para fora ao mesmo tempo. Primeiro, quem nos procura e como nós trabalhamos com esse público que nos procura? Isso é uma afirmação de identidade para a Defensoria muito importante. De diversas instituições do sistema de justiça, a Defensoria é aquela mais arraigada na sociedade, entender quem a procura é fundamental para que ela defenda quem a procura”.

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A Rede Acolhe –
 O programa já reúne 246 famílias atendidas desde o início do funcionamento, em julho de 2017. A defensora pública do Núcleo de Assistência ao Preso Provisório e às Vítimas de Violência (Nuapp) da Defensoria Pública, Gina Moura, que coordenou o programa até o primeiro semestre de 2019, explica que “durante as visitas sociais do programa, as famílias são escutadas e as demandas são identificadas de forma que contextualizamos essas vulnerabilidades, promovendo o acesso à justiça às vítimas de violência letal e seus familiares, um trabalho preocupado com todas as vulnerabilidades que cercam aquelas pessoas. Nisso, a Rede Acolhe procura ter um levantamento de informações no sentido de orientar políticas públicas. Ainda temos à frente o desafio do medo, que é algo que engessa o processo, desde a investigação até a retomada da vida por parte dos familiares sobreviventes. Enfrentamos isso procurando nos aproximarmos dessas pessoas e de suas realidades”, reforça.

Todas essas famílias estão inseridas em contextos territoriais diferentes. Nesse cenário, passar de um território acarreta outras vulnerabilidade. Um destes casos é de Maria*, de 26 anos. O marido foi preso e ela decidiu não visitá-lo mais. Pelo relato dos familiares, o homem a teria ameaçado e, caso não, ela morreria. A jovem não acreditou. Certo dia recebeu uma ligação anônima, avisando que deveria ir em um certo local para receber um dinheiro que o marido havia mandado. Foi executada de forma cruel e a família só descobriu dias depois. Maria deixou três crianças: 8, 6 e 3 anos de idade.

As famílias são recebidas pela equipe psicossocial e durante o atendimento são avaliados os encaminhamentos necessários. “Geralmente temos demandas de saúde mental que se agrava por conta da violência, demandas de moradia também. Dentro da Defensoria há o acompanhamento do processo criminal e temos também os encaminhamentos para outros processos cíveis, questão de pensão alimentícia, guarda, saúde, documentação, consumo. São encaminhamentos internos”, explica Thiago de Holanda.

*Os nomes foram alterados para preservar a identidade das entrevistadas.