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“Violência contra nós, mulheres”

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Elza da Silva, parda, 33 anos. Mãe solteira, trabalha como vendedora e ganha um salário mínimo, que auxilia no sustento da casa que mora com os dois filhos. Estudou até o Ensino Médio, então passou a trabalhar para ajudar em casa. Durante quase 10 anos, Elza viveu um relacionamento abusivo e suportou diversas formas de violência, a psicológica é a mais fresca na memória, no corpo, a física. O ex-companheiro nunca aceitou o término, esse sentimento era intensificado após uma latinha de cerveja. Duas. Três. Várias. E o ciúme, esse que estava sempre presente, piorava tudo. Os dois filhos eram testemunhas de todas as violências, pequenos, acompanhavam o entrar e sair da casa que ele nunca deveria ter entrado.

Apesar de conhecer a Lei Maria da Penha, Elza da Silva não pretende representar ele criminalmente. O motivo maior? Os mesmos que a mantiveram por uma década no relacionamento: a dependência emocional, familiar e o medo.

Lembro-me como se fosse ontem da minha vontade de querer viver um amor. Um amor daqueles que nos arrebata, que torna novo, sabe? Que, a dispôr do desconhecido, instiga, incita. Foi dessa forma com ele, por alguns anos. Quem escuta a narrativa, prevê uma história como dessas de contos de fadas. O homem perfeito, carinhoso, atencioso, cuidadoso. Me via como ninguém e nosso amor nos transformava em um só. Ele era meu e eu era sua. Eu era sua? Ele dizia que eu o pertencia. Era como ele queria que eu me sentisse, todos os dias.

O cuidado intenso era amor. As preocupações diárias eram amor. As ligações para perguntar onde eu estava eram amor. As perseguições. As diminuições. Os xingamentos. As agressões. Era tudo por amor. Era? Era o que ele dizia. A carga do amor virou peso. Peso esse que começou a ferir, marcar. A dor psicológica é a mais fresca na memória, no corpo, a física. Mas “era tudo por amor”, como dizia ele.

Eu já vi o amor de várias formas, mas nunca dessa maneira. Com rigidez, brutalidade, violência. Cresci e batalhei por tudo que conquistei, mesmo com pouco estudo. Sempre fiz questão de mostrar o amor para meus filhos. Dois grandes pedaços de mim. Com o pouco dinheiro que ganhava, conseguia ter o suficiente em casa, mas era tudo de forma esforçada. Até que o meu dinheiro passou a pertencer a ele. O pouco que eu tinha era sua propriedade, também, afinal, “não somos um casal?”, palavras dele, apesar de nunca acontecer da mesma forma para mim.

“Eu sei que você está me traindo, sua vagabunda” era reza na boca dele. Toda sexta, sábado ou domingo. Ou quando ele decidia tomar uma cerveja. Duas. Três. Várias. Do grito ao soco, abusos, humilhações, tapa seco. Ele não pode me tratar assim. O murro na cabeça. Apaguei.

Não importa o lugar, se dentro de casa ou em um lugar público, ele fazia questão de mostrar que tinha controle sobre mim. Era no olhar, na ameaça, no apertar da mão. Acho que, após viver tantos anos com aquilo, eu já começava a ser moldada no formato que ele queria. Era abusivo. Traumatizante. Eu já sabia o que não fazer, o que não vestir, o que não falar. A ordem era não tirá-lo do sério, senão eu recebia. Com grito, com ameaça, com sangue.

Mas nem todos os dias eram cinzas. Havia dias que ele chegava arrependido, carinhoso, talvez na tentativa de compensar o ontem. Talvez. Como alguém que eu amo consegue me maltratar assim? Caí em mim. Até essa compensação virou violência, manipulação emocional. Só eu sei o que passa na minha cabeça e como isso me traumatiza. O amor deu lugar à insegurança, receios, ao medo. Você já temeu pela sua vida? Durante e depois do relacionamento, o medo continua aqui.

Eu via que essa violência não era tão distante da minha realidade, eu percebia. Acompanhei relatos de amigas, de colegas, mas nunca dentro de casa, na minha infância, por exemplo. Conhecia a Lei Maria da Penha, mas não sabia se poderia usar isso ao meu favor. Ainda não tinha violência física. Ele me controlava. Era uma violência? Ele me xingava e me diminuía. Era uma violência? Ele não gostava que eu saísse com minhas amigas. Era uma violência? Quando vieram as primeiras agressões físicas foi que percebi que já vivia aquilo de tantas outras formas, há anos.

Eu queria poder dizer que não há testemunhas do que vivi. Eu queria poder dizer que somente a garrafa de café que ele jogou em mim seria uma testemunha. Ou a vassoura que assistia tudo. Ou aquele som portátil que ele me deu de aniversário que guardava os segredos daquela rotina. Mas, não. Meus dois filhos pequenos ouviam tudo, tendo também suas infâncias violadas. Até os gritos contidos, as brigas, os xingamentos. Eu queria poder apagar isso da memória deles. Acabou. Houve um fim, assim espero.

Preciso continuar minha vida. Ressignificar isso que vivi por tanto tempo. O medo vai permanecer, talvez, e todas as marcas, emocionais principalmente. Mas eu não quero viver dentro desse ciclo de violência, eu não tenho culpa. Nunca tive. Preciso me perdoar. Eu não sou uma lembrança do que eu vivi, eu sou eu. Hoje. Inteira e digna de ser amada.

Elza da Silva não é uma personagem real. Ela é, na verdade, a compilação e representação do levantamento dos dados mais recorrentes de 1259 mulheres atendidas pelo Núcleo de Enfrentamento à Violência Contra a Mulher da Defensoria Pública do Estado do Ceará, em Fortaleza e em Juazeiro do Norte, no Cariri, de janeiro a novembro deste ano. Nas características, os dados de maior índice moldam e formam a personagem e dão rosto à essas vítimas de violência. É Elza, mas também é Maria, Joana, Francisca, Aline, Lara, Andréa e tantas outras.

Onde buscar por atendimento:

Núcleo de Enfrentamento à Violência contra a Mulher – Nudem

Rua Tabuleiro do Norte, S/N, Couto Fernandes (Casa da Mulher Brasileira).

(85) 3108-2986

Núcleo de Enfrentamento à Violência contra a Mulher – Nudem Cariri

Travessa Iguatu, 304, CEP 63122045, Santa Luzia, Crato Ceará.