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Dez anos da lei de cotas: acesso e democratização das instituições públicas e empresas privadas

Dez anos da lei de cotas: acesso e democratização das instituições públicas e empresas privadas

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Nesta segunda-feira (29), a Lei nº 12.711/2012, mais conhecida como Lei de Cotas, completa dez anos. O texto estabeleceu que 50% das vagas dos institutos e universidades federais devem ser reservadas para estudantes que cursaram o ensino médio integralmente em escolas públicas e consigam a nota necessária para ingressar na instituição escolhida.

Este grupo inclui fatias de determinados perfis: metade deve ter renda familiar per capita de até 1,5 salário-mínimo; pretos, pardos, indígenas e pessoas com deficiência devem ser contemplados com um número de vagas equivalente às parcelas que ocupam na população do estado onde se localiza a instituição de ensino.

Essa ação afirmativa é um marco legal que mudou o perfil dos estudantes das instituições públicas brasileiras e também criou uma maior responsabilidade desta pauta nas empresas privadas. Ela escancara que as desigualdades raciais na sociedade precisam de ser visibilizadas.

A Defensoria Pública do Estado do Ceará (DPCE) instituiu como prioridade e como política pública essa questão e pela primeira vez na história da instituição o concurso, que selecionará novos membros, dispõe de cotas raciais. Seguindo a legislação da instituição, 20% das oportunidades são destinadas a pessoas negras, 5% a pessoas com deficiência, 5% a indígenas e 5% a quilombolas.

A discussão sobre a Lei de Cotas da instituição inicia a partir de 2020. A defensora geral, Elizabeth Chagas, e a então ouvidora Antônia Araújo iniciaram as discussões com os movimentos sociais sobre a criação de uma legislação específica para DPCE. Nasce a Instrução Normativa nº 82/2020 sobre o assunto, construída com os movimentos sociais. As lideranças indígenas Ceiça Pitaguary e Weibe Tapeba participaram ativamente desse processo até a construção de um projeto de lei, com aprovação no parlamento em 15 de julho de 2021.

“Nós somos a maior parcela da população, somando os pretos e pardos, mas nós temos uma representação muito pífia nos serviços públicos. Quanto maior o cargo, maior a dificuldade de você encontrar sujeitas e sujeitos negros nesses espaços. Quando eu cheguei na Defensoria, a ideia era trabalhar e fazer uma discussão sobre quem é esse sujeito negro, para além do papel e do lugar de assistido. Quem são essas pessoas no Brasil, no Ceará? Será que esse povo só tem esse espaço mesmo de ser assistido para estar na Defensoria? Começamos a fazer essa discussão internamente. Em pouco tempo, a direção da Escola Superior já estava com a proposta feita, discutimos esse material dentro dos movimentos sociais, a sociedade civil participou desse momento também, e foi muito importante que a Defensoria, considerando o seu papel, a sua importância, saísse na vanguarda no Ceará com esse projeto, instituindo cotas nos concursos públicos. Logo depois, o Executivo implementou a lei de cotas dele”, relembra Antônia Araújo.

“O Estado brasileiro precisa reparar de alguma forma todo o dano que foi causado. Se a gente partir do princípio de que nós não devemos nada, ninguém deve nada a ninguém, aí sim a gente pode dizer que não fazia sentido a lei de cotas, mas não é isso. É uma dívida histórica com a população negra, indígena e quilombola, e a lei de cotas vem sanar parte desse prejuízo histórico”, destaca a ex-ouvidora da Defensoria.

A defensora pública geral do Ceará, Elizabeth Chagas, fala sobre a iniciativa. “Estamos fazendo nossa parte, garantindo o direito à representatividade dentro da Defensoria. Conseguimos sedimentar nossa política, tendo o reconhecimento dos atores dos movimentos sociais e das instituições, e levamos ao Executivo a ideia de regulamentar as cotas e a necessidade de uma lei estadual, projeto concretizado pelo então governador Camilo Santana. É gratificante saber que participamos ativamente dessa ampliação e representa um trabalho de amadurecimento, de intenso debate e, principalmente, da força que essa pauta afirmativa tem para a Defensoria”, pontua Elizabeth Chagas.

O defensor público Eliton Meneses, titular da 5a Vara da Infância e Juventude, não foi contemplado com as políticas de cotas, mas é um grande entusiasta. Ao longo de sua vida, ele foi aluno de escolas públicas em Coreaú, sua terra natal, e em Fortaleza. “Apesar de não ter sido contemplado pelas cotas, eu sempre tive uma especial atenção, mesmo antes delas serem instituídas, nas discussões ainda embrionárias, não apenas tomando como referencial o meu caso pessoal, mas inegavelmente também sentindo na pele as dificuldades de ingresso no Ensino Superior, em concursos públicos”, diz.

“Me considero em vários momentos como uma ilha e isso dá, de certa forma, um viés meio solitário nessa perspectiva de classe, de origem econômica e social. A gente percebe o quanto de injustiças foram praticadas, ao longo de séculos. As cotas são uma realidade e vários avanços são feitos, funcionando na perspectiva de inclusão, fazendo com que não seja tão constrangedor como, por exemplo, o meu caso. Na época da faculdade, eu era o único da minha sala que tinha sido estudante de escolas públicas. Por mais que eu estivesse estudando com bons professores e a vontade deles de ensinar, nossas escolas eram precárias em relação às escolas particulares, naquela época mais competitivas e com preparação criteriosa”.

O defensor lembra como o futuro poderia ter sido diferente para outros amigos, se tivessem cotas. “A gente chegava no vestibular sem ver boa parte das disciplinas, enquanto as outras escolas fechavam todo o programa, faziam revisão. A gente dependia do voluntarismo mesmo, cada um teria que estudar por si. Então, se eu tivesse tido acesso ao benefício das cotas, por exemplo, faria jus a isso pela origem econômica e social. Eu vi muita gente com muita capacidade, amigos próximos a mim talentosos, estudiosos, inteligentes e advindos de escolas públicas, mas que não conseguiram ir além”, disse.
Para ele, a lei de cotas defensorial será paradigmática. “A ideia de desigualar os desiguais, na medida de suas desigualdades. A justiça material que as cotas impõem, tornará nossa Defensoria mais plural, mais eclética e isso faz com que realmente a ideia de Estado Democrático de Direito fique mais latente”, complementa Eliton.

Além do concurso para novos defensores e defensoras públicas, o sistema de cotas da instituição também contempla os concursos para selecionar estagiários. Dentre os estudantes selecionados, Maria Helena Carvalho, de 23 anos, que cursa Direito da UNICHRISTUS, ingressou por meio dessa política afirmativa na DPCE. Ela destaca que a política de cotas é necessária, “porque ela dá oportunidades para a população negra de ter direitos que são inerentes aos seres humanos, mas que nem sempre foram por conta do legado da escravidão. A população negra recebeu educação e oportunidade de trabalho muito depois das outras pessoas. Isso falando não só do Brasil, mas do mundo também. A política de cotas vem no sentido de tentar dar uma igualdade, uma oportunidade maior para essas pessoas”, destaca a estudante.

“Quando a gente olha para os juízes, defensores, para tantos outros cargos importantes, seja no mundo do direito ou não, a gente vê que as minorias não estão. A maioria da população dentro dos presídios é negra, a maioria da população pobre é negra, a maioria da população que está em empregos informais é a negra. Então, a política de cotas é importante porque permite que pessoas como eu possam não só sonhar em ocupar espaços de prestígio, mas que possam realmente alcançar”, complementa.

Felipe Martins, 28 anos, também trabalha na Defensoria Pública e ingressou na instituição por meio do concurso para estagiário de pós-graduação. Ele estudou a vida inteira em escola pública e revela que a lei de cotas foi fundamental para o ingresso na universidade, na Defensoria e para o desenvolvimento educacional e cultural.

“Venho de uma família muito pobre e que não teve as mesmas oportunidades e eu vejo o quanto essa política afirmativa foi fundamental para mim. Falar de lei de cotas é falar de uma lei que visa corrigir erros do passado. A gente tem todo esse histórico colonizador. Até a metade do século XX não existia qualquer arcabouço, qualquer proteção do estado, mínima para a população de negros e negras. Então a gente precisa fazer as devidas correções. A gente só pode falar de democracia quando as instituições respirarem a democracia e para as instituições respirarem a democracia elas precisam ser diversas. Elas precisam ser verdadeiramente o espelho da sua população. E, como infelizmente o Brasil, as instituições do Brasil, ainda não são o espelho da sua população, se faz tão necessária essa política afirmativa de equiparação”.