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“Nós não queremos tolerância. Queremos respeito”, afirma babalorixá Linconly Jesus no #NaPausa – Casos Reais

“Nós não queremos tolerância. Queremos respeito”, afirma babalorixá Linconly Jesus no #NaPausa – Casos Reais

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Apesar do espanto e revolta de muitos, o racismo religioso praticado no começo de junho contra a governadora do Piauí, Regina Souza, é rotina para quem vive a umbanda ou o candomblé no Brasil. Negra e primeira mulher a comandar aquele estado, ela foi chamada de “tia da macumba” após instituir o Dia dos Sacerdotes de Religiões de Matriz Africana. A recorrência deste tipo de crime e de outras intolerâncias foi tema da edição dessa quarta-feira (20/7) do #NaPausa – Casos Reais, o circuito de lives da Defensoria Pública do Ceará (DPCE) no Instagram.

“Nós não queremos tolerância. Queremos respeito às nossas diversidades. O respeito é crucial para desconstruirmos um processo histórico de atrelar a religião negra a estereótipos de maldade quando o terreiro, na verdade, é um pacto civilizatório, uma estratégia de sobrevivência dos vários povos africanos escravizados, arrancados de suas terras e trazidos para o Brasil”, afirmou o doutor em Educação, babalorixá e docente da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira (Unilab), Linconly Jesus.

O resgate histórico foi reforçado pelo defensor público Breno Vagner Bezerra Vicente. Ele atua em Maracanaú, mesmo município onde o pai de santo e professor vive atualmente. “O terreiro não se confunde com uma questão única de manifestação religiosa. É um espaço de resistência, onde a concepção de vida é outra. É uma questão muito mais ampla. Mas há uma falta de conhecimento das pessoas, mesmo a nível formal. Até a ciência já reforçou o racismo por atribuir a determinadas pessoas características criminógenas em decorrência da raça. Terreiros são polos de produção de conhecimento. E um conhecimento que precisa ser melhor difundido”, afirmou Vagner.

Primeira pessoa da família a ser iniciada no candomblé, o babalorixá revelou sentir desde criança manifestações de mediunidade que, a posteriori, aproximaram-no dessa religião de matriz afro-brasileira. Sentiu cedo na pele o estigma de “ver coisas que outras pessoas não veem, escutar coisas que outras pessoas não escutam e intuir acontecimentos”. Ele recordou: “meus pais achavam que eu estava com adoecimento mental, mas eram meus cosmosentidos se ampliando. Me dediquei aos livros e entrei na universidade muito jovem, na perspectiva de mostrar que o que eu tinha não era um problema.”

Desde os anos 2000, quando passou a praticar o candomblé, Linconly diz que vive “compreendendo meus cosmosentidos como um processo de adaptação do meu corpo para a vida”. Segundo ele, a despeito de toda a intolerância e o racismo que as religiões de matriz afro sofrem no Brasil, ainda são os terreiros os locais que muitas pessoas procuram para solucionarem problemas ignorados ou mesmo tratados como desimportantes pelo Estado.

O educador disse: “terreiros foram e são perseguidos pela justiça, pela imprensa, pela polícia, pela elite, mas são um legado das populações africanas. Para sobreviverem, essas populações se adaptaram a outras práticas, surgindo, assim, o sincretismo e a constituição da umbanda, que é quando entra a população indígena e o espiritismo, ajudando a branquear a prática. Mas o racismo é uma estrutura social multifacetada em várias vertentes e vai atribuir à população negra o biotipo de pessoas direcionadas à projeção da maldade, ao crime…”

Na live, Linconly Jesus desmistificou o terreiro, mostrando o espaço como um lugar de desenvolvimento de medicinas, práticas sociais, práticas filosóficas e religião. Um grande universo de atuação que há séculos sofre no Brasil os efeitos de ser demonizado por ser um legado civilizatório de um povo. O povo negro. O povo africano.

Como exemplo, ele citou o ebó. “O ebó é um ritual feito para melhorar a vida. É fruto de uma escola filosófica de mais de 10 mil anos; uma tecnologia de vida; uma tecnologia ancestral. Isso é um legado potente. Quando as pessoas vêm para dentro dos terreiros, é porque elas não conseguem resolver lá fora. Na grande maioria das vezes, o terreiro é o único espaço em que as populações de periferia, em grande maioria negras, vão ter acesso a algo. Dentro desse processo civilizatório, os terreiros vão receber todos os tipos de pessoas. Então, eu, mesmo sendo branco, vou sofrer racismo religioso, porque também tem aí um legado dos estereótipos.”

No senso comum tratadas como “macumba”, em tom pejorativo construído histórica e socialmente, inclusive com a ajuda das grandes empresas de comunicação, a umbanda e o candomblé são práticas diferentes. Segundo o babalorixá, três aspectos distinguem uma da outra, embora ambas sejam religiões afro-brasileiras: a língua, as práticas de resistência e as perspectivas filosóficas.

Por isso, na opinião de Linconly, a intolerância contra tudo o que diz respeito ao povo negro só tem condições de ser combatida através da educação e do diálogo. E, para isso, o cumprimento da Lei nº 10.639, que obriga o ensino da história e cultura afro-brasileira, é essencial para desconstruir o mito, por exemplo, de que Exu, um dos orixás mais cultuados da umbanda e do candomblé, é o guardião da comunicação e capaz de abrir caminhos, e não o demônio, como as principais narrativas públicas afirmam.

“O terreiro é um local satanizado pela estrutura do racismo. Quando eu quero apagar um povo, a primeira coisa que vou destruir é a perspectiva cultural e religiosa. Em Cuba, Exu foi sincretizado como o Menino Jesus, enquanto aqui foi sincretizado como o satanás. Então, o principal na luta antirracista é o diálogo. Porque o racismo é um dos grandes, senão o maior, mal da humanidade. A perspectiva educacional tem papel crucial nesta luta, o que é um desafio, porque aí lidamos com os entraves do cenário educacional. E são entraves muito bem estruturados. A luta contra o racismo não pode estar presente nas escolas apenas no 13 de maio e no 20 de novembro. A pauta tem que ser do cotidiano porque o racismo é cotidiano”, frisou Linconly Jesus.

Para assistir à íntegra da live, clique aqui.