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Resolução prevê mudanças no processo de reconhecimento pessoal do réu para evitar condenações injustas

Resolução prevê mudanças no processo de reconhecimento pessoal do réu para evitar condenações injustas

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Imagina ser acusado de um crime injustamente, porque te reconheceram com base em uma foto. Sua fotografia estar entre os suspeitos de crimes, sem que você nunca tenha passagem pela Polícia. Absurdo? Segundo dados levantados recentemente pelo Colégio Nacional de Defensores Públicos Gerais (Condege), há muita injustiça causada pelo reconhecimento por foto. Em 80% dos casos, são presos por reconhecimento fotográfico homens negros e sem passagem pelo sistema prisional. Nesses casos, o tempo médio de prisão, tendo o reconhecimento fotográfico utilizado como único elemento de prova, foi de 277 dias. Mais de nove meses… Imagine se fosse você.

Como forma de superar falhas na apuração de delitos e evitar condenações injustas, o Plenário do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) aprovou, na terça-feira (6), uma resolução que estabelece diretrizes para a realização do reconhecimento de pessoas suspeitas em processos criminais. O documento aprovado é resultado do grupo de trabalho do CNJ que reuniu especialistas no tema e desenvolveram estudos e procedimentos a serem observados pelo Judiciário. A Defensoria fez parte deste trabalho. 

Entre os aspectos previstos na norma estão a delimitação por natureza do reconhecimento pessoal como prova irrepetível, o estabelecimento de que o procedimento seja realizado preferencialmente pelo alinhamento presencial de quatro pessoas e, em caso de impossibilidade, pela apresentação de quatro fotografias, observadas de acordo com as diretrizes da resolução e do Código de Processo Penal. 

A norma também prevê que, na impossibilidade de realização do reconhecimento conforme esses parâmetros, outros meios de prova devem ser priorizados. De acordo com a resolução, todo o procedimento de reconhecimento deve ser gravado e disponibilizado às partes, havendo solicitação. Outro aspecto relevante é a coleta de autodeclaração racial dos reconhecedores e dos investigados ou processados para evitar imprecisões consequentes do efeito racial cruzado – a dificuldade de reconhecer e distinguir uma raça da outra. 

A Defensoria Pública, por meio do Grupo de Atuação Estratégica das Defensorias Públicas Estaduais e Distrital nos Tribunais Superiores (GAETs), vem acompanhando essas mudanças jurisprudenciais nos Tribunais Superiores para que ocorra uma justa aplicação das leis e o impedimento de condenações injustas. 

“A resolução do CNJ vem se somar e fortalecer a jurisprudência que rechaça o reconhecimento de pessoas realizado de forma equivocada, sem obedecer critérios da lei, e acrescenta aspectos relevantes ao procedimento, no sentido de evitar a influência do racismo estrutural e da criminalização da pobreza na colheita de provas que podem gerar uma decisão condenatória, algo que a defensoria busca combater diariamente na sua atuação criminal”, comenta Patrícia Sá Leitão, titular nos tribunais superiores, em Brasília. 

Para o defensor público Jorge Bheron Rocha, titular do Núcleo de Assistência aos Presos Provisórios e Vítimas de Violência (NUAPP),  o novo posicionamento da entidade qualifica o serviço jurisdicional, tornando as medidas mais efetivas para garantir o cumprimento e a efetividade do procedimento. “A resolução traz um padrão de confiança, uma qualificação na prestação dos serviços tanto investigatórios quanto na prestação jurisdicional que vai ao encontro do Estado Democrático de Direito e respeito às garantias fundamentais. Porém, é importante que o mais rápido possível os tribunais implementem capacitações para os seus magistrados, bem como o poder executivo e as polícias para que de fato essa resolução represente um ganho real no mundo e para as pessoas investigadas ou custodiadas”, analisa o defensor.

Efeitos irreversíveis

No Brasil, prisões ilegais motivadas pelo reconhecimento fotográfico são mais comuns do que se imagina. Um levantamento realizado pela Defensoria Pública do Rio de Janeiro, durante os anos de 2012 e 2020, revelou pelo menos 90 prisões injustas baseadas em reconhecimento fotográfico no país. 

Uma estudiosa neste tema, a defensora pública cearense Lara Teles analisa que as falhas são comuns no judiciário brasileiro, já que a prática brasileira está desatrelada das recomendações científicas para o testemunho. “A prática brasileira em termos de reconhecimento de pessoas está desatrelada das recomendações científicas da psicologia de testemunho que foram firmadas há mais de 30 anos, o que evitaria que pessoas inocentes sejam condenadas e as culpadas absolvidas. O reconhecimento não se faz somente com base na intuição ou na experimentação. Existe uma ciência para isso e existem fatores catalogados que reduzem o risco de injustiça”, explica Lara.

A Defensoria aponta que, quando a ilegalidade da prisão é provada, o Código Civil, em seu artigo 954, prevê o dever estatal de indenizar a pessoa em perdas materiais e danos morais. Porém, apesar da medida, a condenação injusta causa efeitos irreversíveis na vida do preso. “Responder a um processo criminal, por si só, já reflete um grande prejuízo na vida de uma pessoa, pois a coloca em situação de desvantagem social,  a coloca como alguém sob suspeita, afetando sua honra e dignidade. O que dizer de uma condenação injusta na vida de alguém que já possui várias vulnerabilidades? Quem dará crédito à sua palavra? Quem lhe dará uma oportunidade de recomeço, algo que ele não teve nem mesmo quando era considerado inocente?”, questiona a defensora Patrícia Sá Leitão.   

Estudos – Como forma de ampliar as discussões sobre assunto, o artigo “Pode-se falar de cadeia de custódia da prova testemunhal?”, de autoria dos defensores cearenses Jorge Bheron Rocha e Lara Teles, foi publicado na coletânea nacional do CNJ sobre o reconhecimento de pessoas em processos criminais disponibilizado neste ano.

“O artigo retrata a possibilidade de se falar de uma cadeia de custódia da prova testemunhal, ou seja, estabelecer um rastreamento de como a memória humana, ao longo do procedimento, vai sendo influenciada para que ao final possamos avaliar se sofreu ou não uma contaminação e com isso estabelecer parâmetros mais confiáveis a fim de que a adesão judicial não seja revestida de injustiças”, explica Lara Teles. 

 

 

O material reúne estudos e relevantes opiniões acerca da prática no direito penal brasileiro e traz inúmeras perspectivas para aprimorar o sistema de justiça criminal. O catálogo da CNJ está disponível gratuitamente através do link: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2022/12/coletanea-reconhecimento-de-pessoas-v6-2022-12-06.pdf