Ausência de registro de nascimento ainda é realidade no Ceará. DPCE atua para resolver casos
Sem a certidão de nascimento, uma pessoa não tem nome, sobrenome e nacionalidade. Não existe, portanto, oficialmente para o Estado enquanto cidadã, com direitos e obrigações. A agricultora Luiza Sousa Cabral, de 50 anos, conhece bem a invisibilidade por ausência de documento. Ela buscou a Defensoria Pública Geral do Estado do Ceará (DPCE) para dar entrada em uma ação de registro tardio da neta, hoje com 13 anos. A mãe da adolescente morreu quando ela tinha apenas três anos, e o pai é desconhecido.
A família reside em Uruquê, na zona rural de Quixeramobim, distante 206 quilômetros de Fortaleza, no Sertão Central, e há anos tenta registrar a garota. “Minha filha morreu há muito tempo e levou com ela o segredo sobre o pai da minha neta. Procurei o Fórum, mas como não tinha o pai para registrar a criança, não deu certo. Eu não sei quem é e nunca ouvi falar. Minha neta começou a estudar apenas com a carteira de vacinação, mas agora já estão exigindo a documentação dela e eu preciso resolver isso”, revela Luiza.
Há ainda o medo de acontecer algo mais grave com a adolescente e não ter como resolver qualquer questão por ausência de documentação. “Lá no Uruquê, como todo mundo me conhece, consigo resolver muita coisa com o cartão de vacina. E foi só assim que consegui matriculá-la na escola. Ela já está no oitavo ano, mas não tem nada de documentação. Com essa pandemia, a gente não deixa ela sair de jeito nenhum, com medo dela pegar essa doença e não poder ir nem para um hospital”, complementa a avó.
O defensor público Jefferson Leite Dias, titular em Quixeramobim, foi o responsável pelo atendimento da família da garota. “Geralmente, depois de passar o prazo legal para realizar o registro de nascimento, usamos a Declaração de Nascido Vivo (DNV), emitida pelo hospital, para auxiliar na ação judicial. Mas quando não temos nenhuma documentação anexamos nos autos provas como batistério ou cartão de vacinação e o relato de testemunhas que conhecem a história. Neste caso, o Estatuto da Criança e do Adolescente não permite que os avós sejam considerados pais. Ele não permite adoção. Só em modos excepcionais. Nesse caso, é preciso apresentar os documentos da mãe falecida e a avó entra na ação em favor da adolescente”, explica o defensor público.
A ausência do registro de nascimento é uma realidade cruel no Brasil. “As pessoas não imaginam as consequências que a ausência de documentos pode acarretar ao longo da vida. Além da dificuldade em acessar todos os serviços públicos, ela ainda fica fora das estatísticas de órgãos oficiais. São dramas pessoais e familiares que acompanhamos diariamente aqui na Defensoria Pública”, destaca a supervisora do Núcleo de Atendimento e Petição Incial (Napi) de Fortaleza, defensora pública Natali Massilon Pontes.
De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD/2015), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mais de três milhões de pessoas no Brasil não possuem certidão de nascimento. Ainda de acordo com o estudo, o Ceará apresenta o segundo maior número de sub-registro (273.207), perdendo apenas para São Paulo (869.388). Em seguida estão Paraná (234.174), Rio de Janeiro (219.583) e Goiás (188.546).
O registro de nascimento é fundamental para os atos da vida civil. Sem ele, não há possibilidade de emitir a certidão de nascimento e a pessoa não consegue exercer a sua cidadania. Se torna um invisível nas políticas públicas, nos dados, estatísticas e, principalmente, fica impossibilitado de acessar direitos fundamentais como saúde e educação. Na DPCE, diariamente, pessoas relatam a ausência do registro de nascimento e buscam orientação para dar entrada nas ações judiciais de registro tardio.
É o caso de Edvando Belarmino do Nascimento. Ele só passou a existir para as estatísticas após 28 anos depois de nascido, em 20 de setembro de 1992. O atendimento com a Defensoria aconteceu em meio a pandemia do novo coronavírus e foi todo realizado de forma remota, com o envio das informações por aplicativos de mensagens do Napi.
O problema da falta de documentação não afeta somente o Edvando, mas toda a família dele. A cena se repete com a irmã, Aline Nascimento, os sobrinhos e com a madrinha das crianças, Ana Célia. “A nossa mãe não tinha documentos, sempre trabalhou muito e não teve tempo para fazer isso. Desde que nascemos, ficamos sem registro e isso meio que foi passando para todos”, diz Aline. Após quase 30 anos sem ter qualquer documentação, o sonho dos irmãos, enfim, vai poder se concretizar. Aline informa que já conseguiu através da Defensoria dar entrada na própria documentação e iniciar a dos filhos.
“Hoje veio o grande dia e consegui levar o Edvando no cartório do Mondubim para se registrar”, comenta Ana Célia, com alegria. Após quase 30 anos de espera, Edvando finalmente poderá dar os primeiros passos e ter sua cidadania assegurada. Ele relata que não vê a hora de estar com todos os documentos nas mãos. “Poderei agora assinar minha carteira de trabalho, viajar, me vacinar, ir ao hospital. Tudo será diferente”, comemora.
A defensora pública Natali Massilon Pontes comenta o passo a passo para dar entrada nas ações. “Após o levantamento das informações necessárias, o procedimento inicial é realizar uma busca junto aos cartórios de registro civil de pessoas naturais para certificar sobre a ausência do documento. Com a negativa dos cartórios, entramos com a ação judicial de registro tardio. A Defensoria propicia às pessoas que não possuem o registro o direito de exercerem com plenitude a cidadania, garantido o acesso ao registro de nascimento. Às vezes, identificamos vários membros de uma mesma família sem o registro de nascimento. É a ausência de cidadania sendo repassada de geração em geração.”
Qualquer pessoa que não possua o registro de nascimento, que não tenha condições de arcar com as despesas de um advogado e que esteja em situação de vulnerabilidade, pode procurar a assistência jurídica da Defensoria Pública para iniciar os encaminhamentos necessários à lavratura do registro civil.
SERVIÇO
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