Posse Popular de Elizabeth Chagas é marcada pelo florescer do baobá, a árvore negra da vida e da resistência
TEXTO E FOTOS: BRUNO DE CASTRO
“Minha árvore é baobá, rainha da savana.
Banhada de sol e lua.
Acarinhada de vento forte.
Brincante de vaga-lume.
Alimentada das falas ancestrais.”
(trecho de “Cartão de Natal”, da poetisa Catita)
Como quem presenteia o mundo com uma filha, a mãe da floresta desabrochou uma flor. E o fez no exato momento no qual outra mulher florescia para uma caminhada. Em um terreiro no meio de uma serra cujo nome em tupi significa “onde o dia começa primeiro”, um baobá frondoso encontrou uma defensora geral esperançosa. A árvore negra, símbolo maior da ancestralidade humana, a guardiã da sabedoria, aquela que é o pilar do mundo no chão da vida, é também agora o símbolo de uma instituição cuja missão é resistir. A Defensoria.
Porque defender é lutar. É pelejar, tal qual o baobá na sequidão. É ser ponte entre mundos, como esse tipo muito específico de árvore, que liga o divino à humanidade. É atravessar o tempo firme, assim como essa madeira milenar. É perpetuar-se, a exemplo dessa malvácea, cujas folhas curam e o ensinamento maior é a evolução. “Eu entrei uma aqui e saio outra. Pelo contato que tive com toda essa natureza e por todas as falas que ouvi. Saio mais energizada. Mais forte. E devo isso a vocês”, sintetizou Elizabeth Chagas.


No Cariri cearense, em meio aos verdes (da Chapada do Araripe e dos pares), rodeada de gentes de todos os cantos, ela foi empossada pela sociedade civil defensora pública geral para mais dois anos de mandato. Ficará à frente da instituição até o fim de 2023. Resistindo. Acolhendo. Lutando. “Nossa ancestralidade veio saudar você, Beth, porque a gente sabe que não será fácil. Mas nós não vamos te soltar! Você vai ter êxito nesses dois anos. E, pra isso, conte conosco. Que você seja, então, a guardiã de muitas vidas”, sentenciou Valéria Carvalho, uma das anfitriãs do Terreiro das Pretas.
Foi dela que Elizabeth Chagas recebeu um baobá, desta vez miúdo, envasado e diferente do que floresceu durante a posse, para crescer não nas sertanias de Crato e sim dali distante quase 600 quilômetros, numa capital acelerada. Defensores, quilombolas, redes de mulheres negras, movimentos negros, Cáritas Diocesana, grupos de resistência negra, universidade, povos de terreiro, povos indígenas, coalizões por direitos, todos ali presentes testemunharam um compromisso. O da lida por dias melhores para quem precisa.
Uma saudade do futuro. “Se nosso povo demanda por justiça e vocês, defensores e defensoras, estão nesse lugar pra que nosso povo tenha acesso à justiça, pra que nosso povo cante, e não só de dor, vocês têm, então, uma responsabilidade. O compromisso de vocês é com o povo. A gente confia e observa. A gente confia e cobra, porque nossos jovens estão sendo presos e mortos. E a gente não quer nosso povo silenciado e humilhado. A gente quer alegria, liberdade e vida. Essa posse popular é porque a gente crê e sabe dos lugares que a gente pode ocupar. Quem sabe daqui a alguns anos tenhamos uma defensora geral preta, indígena ou quilombola?”, profetizou Sara Menezes, do Instituto Negra do Ceará (Inegra).
Também foi tempo de desejo do presente. A viabilidade do outro. “Beth, seu ouvido sempre foi respeitoso e presente. A gente espera que isso se mantenha neste novo mandato. É pela vida e liberdade nas periferias que estamos aqui. É por uma Defensoria atuante”, frisou Alessandra Félix, da Frente pelo Desencarceramento. “Estamos na região que mais mata mulheres depois de Fortaleza. Só o Crato tem hoje 306 mulheres vivendo com medidas protetivas e mais de 700 BO’s registrados. Queremos viver”, bradou Mara Guedes, do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher.

A flor do baobá, a árvore dada de presente, os votos de bons ventos pro biênio que se aproxima, tudo isso foi, sobretudo, uma visita ao local onde a defensora geral começou a caminhada no sistema de justiça cearense, 15 anos atrás, quando entrou na carreira. Agora prossegue com energias da mais genuína ancestralidade: a vida da terra. “E nós lutamos muito para que nos concedam a garantia de um espaço que a gente chama de santuário. Mas o racismo estrutural é grande! Por isso que nós precisamos de defensores que nos escutem. A terra é sagrada. Que Exu nos ajude!”, pediu mãe Herlânia, representando os povos de terreiro.
“Aprendi que a terra é sagrada. Aqui, este terreiro, é um lugar onde a gente constrói felicidade. Por isso, Beth, é uma honra muito grande construir a caminhada contigo. Mas vamos dar trabalho! Porque a gente não compactua com injustiça. E sabemos que você também não. Então, você, pra nós, é uma de nós. E a maior força do mundo é o amor. Onde mora o amor, Deus está. A gente deseja a você uma caminhada exitosa e perto do povo”, acrescentou Verônica Carvalho, também anfitriã do Terreiro das Pretas.
Ali, no miolo da Serra do Araripe, pés descalços num horizonte de luzes de três cidades, Elizabeth Chagas reforçou o compromisso de ter os movimentos sociais, parte importante da razão pela qual a Defensoria Pública Geral do Estado do Ceará (DPCE) existe, como aliados de primeiro escalão. Gente com quem vai caminhar. Lado a lado. De mãos dadas e punho em riste.
“Temos uma sociedade estruturada no racismo. E precisamos ter o cuidado de não reproduzirmos esse racismo. Nós, enquanto Defensoria, lutamos com vocês porque entendemos que o racismo, assim como o machismo, a LGBTfobia e tantas outras formas de opressão, afetam presentes e futuras gerações. Por isso, recebo todas as falas aqui feitas. Me preocupo e me importo. Porque ser defensor é uma oportunidade de sentir. De ter empatia. De transformar vidas. De agir em prol de quem mais precisa. E essa vida é passageira. O que fica é o que a gente faz. E eu não estou aqui por acaso. Estou aqui pra deixar um legado de luta contra o racismo e o machismo. Estou aqui pra que a gente possa fazer a diferença”, sentenciou uma defensora geral empossada pela sociedade civil que, no carro, de volta pra casa, trás o baobá a ser plantado no terreiro da mais importante instituição do Ceará em defesa das populações vulneráveis.
Porque o futuro é ancestral.




