“A gente tem que ocupar todos os lugares”
É por compreender a importância de estar onde está hoje que Dediane Souza sentencia: “a gente tem que ocupar todos os lugares. E tem muitos pra ocupar ainda. Se não for eu própria, serão outras Dedianes.”
Aos 33 anos, ela é fruto de movimentos sociais, cursa mestrado em Antropologia e está entre os 0,02% de travestis e transexuais com alguma graduação no ensino superior brasileiro. O dado é da associação nacional da categoria, a Antra. E retrata em Dediane o quão decisivos podem ser os processos educacionais para uma população historicamente excluída de políticas públicas, marginalizada e estigmatizada.
“Quero ser professora universitária. Quero ser pesquisadora, e uma pesquisadora que traga questões importantes, que possa propor reflexões e mudanças na sociedade. Porque nós temos uma disputa pelo respeito, para que não sejamos assassinadas apenas por sermos travestis. Há uma reivindicação pelo direito à vida. Para além da pauta política, a gente reivindica o direito de existir”, pontua a estudante.
Na lógica de um mundo que oscila entre o masculino e o feminino, Dediane escolheu uma terceira via. Não é homem. Muito menos mulher. É travesti. E assim faz questão de ser apresentada. Reivindica uma identidade própria, única. Uma identidade possível e que a retrata por inteira. Mas que se torna desafio no país líder do ranking mundial de assassinatos de pessoas trans e travestis.
“Quando me identifico enquanto travesti, passo a entender que preciso ressignificar essa categoria. Eu entendo a travestilidade como uma categoria política e identitária marcada por experiências embasadas na ruptura de uma lógica binária do olhar ocidental. A travestilidade é uma possibilidade além”, frisa. “Mas é importante entender que a travestilidade não é uma identidade pronta e sim uma identidade em construção, que mostra que a gente tem outras possibilidades de se reconhecer”.
Esse autoreconhecimento enquanto travesti aconteceu quando Dediane tinha cerca de 18 anos e militava em movimento social. Foi no Grupo de Resistência Asa Branca (Grab), uma referência na luta em prol da população LGBTQIAP+, que ela viu ser posta em xeque a identidade até então exercida de homem cisgênero gay. Ou seja: um homossexual que se reconhece com o gênero masculino. Mas mesmo ali a travestilidade já lhe atravessava. Já lhe pertencia.
“Eu só não tinha descoberto que aquilo que eu era era travesti. Porque eu não tinha referência de travestilidade. Quando passo a ter e o outro me reconhece como par seu, isso se transforma numa perspectiva de uma inquietação, de transformação corporal, de afirmação política. Porque eu só passo a ser travesti quando digo que sou travesti. Antes disso, eu achava que existiam só homens e mulheres. Mas quando percebo que a travestilidade é possível como uma identidade, isso passa a ser algo importante na minha vida. A partir daquele momento, isso foi minha grande bandeira de luta. A minha afirmação.”
Daí, então, foi construir-se para uma trajetória diferente daquela dita pela sociedade para travestis. Dediane queria um destino diferente daquele traçado pela literatura e pela imprensa de que sujeitas como ela são promíscuas e marginalizadas. Ela queria o centro. Mobilizou-se, reinventou-se, ingressou na universidade, virou jornalista e agora integra um programa de pós-graduação mantido por duas universidades públicas federais conceituadas (UFC e Unilab). E está lá estudando as suas. Pesquisa aspectos do caso Dandara, ocorrido em 2017.


“Minha existência tem um compromisso político de ressignificar o ser travesti. Estou aqui para disputar um lugar de humanidade. Para dizer que não sou alguém exótico. Eu sou um semelhante, mesmo que tenha uma identidade fora dessa lógica dita aceitável. Eu não me sinto diferente. Sempre soube que não era uma pessoa cisgênera, que aquilo não me cabia. E foi um processo muito natural, porque eu já estava nos espaços políticos e já me reivindicava enquanto liderança. Houve ali o reconhecimento de que eu não era apenas um jovem gay com tendência à travestilidade. Eu era travesti. E uma travesti que tem experiências muito parecidas com as outras travestis. Você muda só o sujeito, mas as vivências, o olhar, a infância… tudo se cruza e se encontra em várias dores. Mas uma marca da travestilidade é ressignificar as violências. É transformar esse luto em luta.”
Dediane sabe, entretanto, que a visibilidade de hoje, a representatividade que carrega hoje, tudo isso é fruto de inquietações e abdicações. De mais dedicação do que um homem heterossexual, cisgênero e branco, por exemplo, que não sofre violências de toda ordem como ela, uma travesti preta consciente da necessidade da coletividade.
“Pra eu chegar onde eu cheguei, eu estava no lugar certo, na hora certa e com as pessoas certas. Eu dediquei metade da minha vida aos movimentos sociais, à luta coletiva. Porque movimento é isso: luta coletiva. Claro que tem também o desejo individual, porque sem ele você não vai pra lugar nenhum. E o meu desejo individual era o de romper com a cultura do não acesso. Porque mesmo sendo travesti eu fui a primeira da minha família a acessar o ensino superior. Mesmo sendo travesti, eu sou a primeira a acessar um programa numa universidade federal. Mas isso não me diferencia dos meus irmãos. Apenas mostra que abri mão de muita coisa pra isso acontecer.”
E aconteceu, com alguém vindo do sertão cearense, de Santana do Acaraú, para caminhar ao lado de lideranças LGBTQIAP+ como Janaína Dutra e Thina Holanda, hoje ancestrais. Agora, Dediane diz estar se descobrindo enquanto intelectual e alguém que pode construir uma carreira acadêmica, a despeito de um mundo que lhe diz não. É no espaço universitário, a propósito, que ela tem depositado energias.
A luta é pela implementação de cotas para o “segmento t”, algo inviabilizado pela atuação de setores conservadores da sociedade, que ainda enxergam perigos inexistentes em pessoas trans e travestis. O mesmo esforço ela faz em prol da manutenção das cotas raciais para negros e negras, indígenas e quilombolas.
“Eu pensei sim que seria uma grande liderança, porque trabalhei pra ser uma grande liderança. E encontrei pessoas importantes para ser uma grande liderança. Eu fui apoiada para ser uma grande liderança. Mas eu não vou dizer que minha experiência é única e individual. Posso até dizer que é única, porque ela é minha, mas ela é coletiva, porque tem muitas pessoas. Minha personalidade é construída a partir de um conjunto de referências. Eu sempre tive um processo de educação de coletividade. Minha vida é coletiva. Quando a Dediane vai, ela leva outras. Então, não tem como eu chegar num lugar e não discutir política, corpo e mudança.”

Nesta quinta-feira (27/1), a Defensoria Pública Geral do Estado (DPCE) continua a série “Visibilidade Trans” contando a história de Silvio Lúcio.

