
A liberdade é um bem importante para ser tirado por tão pouco
O furto de dois inseticidas e dois pacotinhos de achocolatado, no valor total de R$ 32,50, significou para o pintor G.L.C., de 42 anos, uma noite de prisão na Penitenciária Industrial Regional de Sobral. No dia do ocorrido, ele contou que os achocolatados seriam para a sua filha pequena que estava em casa com fome. Os chamados “flagrantes de bagatela” são uma triste realidade diária do sistema prisional brasileiro.
O pintor só conseguiria voltar para casa se pagasse uma fiança no valor de R$ um mil reais (R$ 1.000,00), ou seja muito maior que o valor subtraído, e graças a rápida atuação da Defensoria Pública do Estado do Ceará (DPCE), ele teve sua liberdade assegurada. “Em contraste com a maioria dos casos, foi admitida a ausência de tipicidade material, quer dizer, foi considerado pelo juiz que não havia crime na subtração sem violência de bens de pouca monta”, conta o defensor público titular de Sobral, Igor Barreto, que atuou no caso.
Inúmeras pessoas são conduzidas todos os dias, às delegacias de polícia, em flagrante delito, por situações manifestamente insignificantes. Conduzidas e, ao final, encarceradas. Vale destacar que a maioria dos casos que se aplicam ao princípio de insignificância penal são de furtos. Embora ainda não existam dados específicos, a quantidade desses processos que envolvem principalmente furto de comida estão aumentando em tribunais pelo país, um sintoma da pandemia de Covid-19 e do aumento da fome no país. Para os defensores públicos, a liberdade é um bem importante para ser tirado por tão pouco.
“Episódios de insignificância são comuns nas delegacias. Os principais problemas decorrentes da criminalização de crimes patrimoniais sem violência, cujos bens subtraídos têm valor reduzido, são a consagração do Direito Penal como política de Estado, cassando, em grande parte, pessoas pretas, pobres e periféricas”, contextualiza o defensor público Igor Barreto de Menezes Pereira, atuante na 2ª Defensoria Criminal de Sobral.
Casos como o do pintor se repetem em todo o Ceará. Em Iguatu, a defensora Miriam Lopes de Araújo Konstantinou, defensora no município, explica que somente entre os meses de janeiro e fevereiro se deparou com, pelo menos, 05 processos de insignificância. Destes, em sua análise, o réu chegou a passar dez meses preso por furtar dois pacotes de castanhas, outro em uma tentativa de furto de conectores de energia, ficou 04 meses, a tentativa de furto de uma bicicleta restou em 02 meses no cárcere. “A atual realidade social necessita da aplicação de um Direito Penal pautado nos princípios da intervenção mínima e da fragmentariedade, voltado, sobretudo, para salvaguardar as garantias fundamentais dos cidadãos”, destaca.
Ela informa que, na prática, três fatores podem ajudar a compreender a importância do debate sobre o princípio da insignificância: “o primeiro é que a sobrecarga de processos envolvendo casos insignificantes contribuem para uma maior morosidade da prestação jurisdicional. Além disso, estes processos representam um constrangimento indevido para o réu, haja vista que, ao final do processo, será absolvido pela atipicidade da conduta e, por fim, é agravado porque muitas vezes esses mesmos processos insignificantes são utilizados nas certidões de antecedentes criminais, sem uma análise detida dos fatos, servindo, muitas vezes, como fundamento de prisões preventivas desnecessárias”, pondera Miriam.
No Crato, dois homens ficaram dias na cadeia por um suposto furto de um pneu “careca” de um fusca. Em depoimento judicial, a testemunha afirmou que viu dois garotos com um pneu, quando questionados por ele a quem pertencia, eles saíram correndo falando que tinham roubado. O homem então vê outro um transeunte passando pela rua e pede para ele olhar o objeto enquanto vai em uma oficina checar. Ao retornar, as testemunhas do furto são abordadas pela polícia e ambas presas. E, embora o objeto tenha sido prontamente restituído ao legítimo dono, eles foram encaminhados para a delegacia, sem sequer ter participação no furto.
Para o defensor público do caso, José Aníbal de Carvalho Azevedo, “seria muito importante nestes tipos de episódios, que o Ministério Público, ao receber os autos do Inquérito Policial já antecipadamente se manifestasse pela aplicação do princípio da insignificância, sem necessidade de instauração e desenvolvimento de processo criminal”. Após pedido escrito formulado pela Defensoria eles tiveram a liberdade provisória concedida.
Ele destaca a necessidade de olhar para a máquina da Justiça, bem como para a vida de cada cidadão acusado injustamente ou por coisas com baixo valor. “Cada processo criminal, mesmo que um só, quando passa a tramitar na unidade judiciária demanda expedientes e a movimentação de todo o sistema de justiça penal e seus diversos agentes, onerando o custo do serviço, além de ocupar tempo inutilmente, pois o Poder Judiciário não deve ocupar-se de miudezas”, sentencia José Aníbal, atuante na 1ª Defensoria Criminal de Crato.
O primeiro passo de qualquer pessoa detida deve ser o de comunicar-se com familiares em busca de assistência jurídica e permanecer em silêncio na Delegacia. Acessando a defesa, é dela a responsabilidade de provocar o judiciário, alegando o princípio da insignificância. “Em caso de prisão em flagrante, quando se trata de pessoa hipossuficiente, a prisão é comunicada em 24 horas à DPCE, que se manifesta pela concessão de liberdade provisória à pessoa flagrada, podendo caso seja mais adiante desencadeada ação penal, pleitear a absolvição sumária do acusado ao ofertar ao juízo criminal a peça de resposta à acusação, sem necessidade de maiores e inúteis delongas”, finaliza José Aníbal.
O chamado “furto por necessidade”, definido quando uma pessoa, em situação de extrema pobreza, subtrai (furta) para saciar a fome ou necessidade básica sua ou da família está em discussão no Congresso Nacional por meio do Projeto de Lei 4540/21, que pretende alterar e balizar estas condutas retirando a tipicidade penal. “Quando o agente, ainda que reincidente, pratica o fato nas situações caracterizadas como furto por necessidade e furto insignificante, sem prejuízo da responsabilização civil”, diz o projeto. Ainda que polêmico, é um debate importante a ser travado para que muitos Joãos, Marias, Josés não sejam responsabilizados criminalmente por precisar comer ou por objetos de valia insignificante.
Neste domingo, dia 20, Dia da Justiça Social, é prudente refletir em quantas desigualdades sociais estão à nossa volta. Segundo dados divulgados recentemente pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Pensam), no Brasil tem pelo menos 19 milhões de pessoas passando fome e 55% das famílias estão em insegurança alimentar.
“Ter um botijão de gás a R$ 120 é muito grave. O quilo do feijão e arroz a R$ 9 em algumas capitais. O preço absurdo do quilo da carne. Em 1974, foi feito o primeiro estudo nacional de despesa familiar. Lá, foi demonstrado uma situação de fome desse nível que estamos vendo agora. Famílias faziam sopa de papelão pelo país. Nós estamos vendo isso agora. Nunca passamos por uma situação tão seria”, afirmou Sandra Chaves, disse vice-coordenadora da Rede Penssan, em entrevista à CNN. Para ela, “nunca passamos por situação tão séria”.