 
			Conquistar outras independências é lutar contra o racismo
É como um conto de fadas: uma princesa branca, em um rompante benevolente, liberta milhões de negras e negros, fazendo, assim, do Brasil uma grande democracia racial, na qual todos convivemos harmonicamente e temos as mesmas oportunidades. Essa é a história narrada pelos livros sobre Isabel, filha de Dom Pedro II, “a redentora”, quando da abolição da escravatura. Era 13 de maio de 1888, um domingo. E muita coisa mudou desde então, inclusive o entendimento sobre a data.
Há décadas, os movimentos negros reivindicam a ressignificação do marco. Diante de diversos registros históricos, sabe-se que não se tratou de uma concessão, uma bondade da herdeira do trono do então Brasil Império. O fim do regime escravista decorreu da resistência e da luta dos escravizados por liberdade, além de conjunturas econômicas locais e internacionais que impuseram a interrupção do trabalho forçado e não-remunerado à população negra.
Por isso, hoje é, na verdade, o Dia de Luta Contra o Racismo (e não o Dia da Abolição). Porque a abolição, de fato, não aconteceu por completo. Negras e negros conquistaram a liberdade física, mas foram entregues à própria sorte. Sem políticas reparatórias depois de quase quatro séculos de servilismo. Sem ações de inclusão social. Com o poder público financiando o acolhimento de imigrantes europeus. Algo cujo reflexo é sentido até hoje por negros e negras, já que o Brasil tem mais tempo de escravidão (388 anos) do que de liberdade (134 anos), o racismo é estrutural e dificulta – ou mesmo impede – a vida desses indivíduos em dimensões familiares, afetivas, penais, financeiras, intelectuais e históricas.
 Daí a necessidade de questões como essas serem reafirmadas. Porque conquistar efetivamente essas independências, essas abolições, é um jeito de lutar contra o racismo. “Eu sou fruto do amor de uma mulher negra e de um homem negro que formaram uma família com base não só em amor, mas no orgulho diário da pele negra, de compreensão das relações raciais e da ainda atualidade das desigualdades na nossa sociedade. Esse amor e essa consciência, que eu também procuro passar pras minhas filhas, foram decisivos na minha escolha profissional. Mas tenho o entendimento de que ainda há muito a ser conquistado no âmbito dos direitos individuais e sociais da população negra”, afirma o defensor Rafael Pereira de Góis (foto), que atua em Tianguá.
Daí a necessidade de questões como essas serem reafirmadas. Porque conquistar efetivamente essas independências, essas abolições, é um jeito de lutar contra o racismo. “Eu sou fruto do amor de uma mulher negra e de um homem negro que formaram uma família com base não só em amor, mas no orgulho diário da pele negra, de compreensão das relações raciais e da ainda atualidade das desigualdades na nossa sociedade. Esse amor e essa consciência, que eu também procuro passar pras minhas filhas, foram decisivos na minha escolha profissional. Mas tenho o entendimento de que ainda há muito a ser conquistado no âmbito dos direitos individuais e sociais da população negra”, afirma o defensor Rafael Pereira de Góis (foto), que atua em Tianguá.
Ele, como todos os membros da Defensoria Pública Geral do Ceará (DPCE), ocupa as trincheiras pela efetivação de direitos muitas vezes básicos, como o direito à família, negado de forma recorrente à população negra por ser ela a que mais é morta, inclusive por agentes do Estado, e também é a que mais superlota os presídios do país. Como se os lugares naturais de negros e negras fossem mesmo a penitenciária ou o cemitério. A cela ou a cova.
Segundo o Anuário da Segurança Pública, 67% da nossa população carcerária é negra. No tocante ao Judiciário, estudo da Agência Pública indica que 71% dos negros condenados por apreensão de maconha têm, em média, 145 gramas da substância, enquanto 64% dos brancos condenados portam, em média, 1,14 quilo da droga. Isso evidencia um tratamento diferenciado imposto a partir da raça. Ou seja: negros são tirados de circulação mesmo portando só 12% da quantidade da mesma substância com a qual brancos são apreendidos. Em suma, negros são considerados ameaças à sociedade.
“Aqui no Brasil, a gente vive uma onda punitivista. As prisões foram feitas para quem? Com qual finalidade? Os abolicionistas penais demonstram que as prisões não cumprem sua função. E que, além disso, agem de modo seletivo. Elas aprofundam as desigualdades sociais e agem de modo discriminatório”, afirma a pesquisadora do sistema penitenciário, antropóloga Izabel Accioly.
 Também estudioso do tema e titular do Núcleo de Execução Penal (Nudep) da DPCE, o defensor Leandro Bessa (foto) reflete sobre os porquês desse marcador racial indicado pelo Anuário e pela Agência. “Termos negros como maioria dos presos é reflexo de um sistema de justiça estruturalmente racista. Porque a população negra sempre foi vista como inimiga. Presídio é controle social. Mesmo nos conflitos mais graves, quando o caso chega a um sistema de justiça racista, isso pega muito mais negros e negras. Então, não vejo o Direito Penal como solução adequada. Sob o pretexto de proteção aos direitos humanos, acabam violando direitos humanos. O sistema aprisiona negros e está calcado nessas bases”, afirma Bessa.
Também estudioso do tema e titular do Núcleo de Execução Penal (Nudep) da DPCE, o defensor Leandro Bessa (foto) reflete sobre os porquês desse marcador racial indicado pelo Anuário e pela Agência. “Termos negros como maioria dos presos é reflexo de um sistema de justiça estruturalmente racista. Porque a população negra sempre foi vista como inimiga. Presídio é controle social. Mesmo nos conflitos mais graves, quando o caso chega a um sistema de justiça racista, isso pega muito mais negros e negras. Então, não vejo o Direito Penal como solução adequada. Sob o pretexto de proteção aos direitos humanos, acabam violando direitos humanos. O sistema aprisiona negros e está calcado nessas bases”, afirma Bessa.
“Tipos penais foram criados para criminalizar a cultura negra, o que faz o racismo operar através do sistema de justiça criminal. Por isso, pra mim, aumentar a representatividade é fundamental. Nós, brancos, não nos racializamos. Isso faz com que a gente não considere a raça como algo determinante, quando é. Se o lado de cá, de quem opera o Direito, é todo branco, e o banco dos réus é ocupado por não-brancos, então a raça é determinante. Nesse sentido, as políticas afirmativas em concursos, como está fazendo a Defensoria do Ceará, pode ser revolucionária para reduzir o perfil historicamente monocromático do operador do Direito”, acrescenta a assessora de relações institucionais da DPCE, defensora Lia Felismino, outra pesquisadora do tema.
Essa lógica punitivista aprisiona também a possibilidade de negros e negras alcançarem independência financeira. Por estarem presos, por não conseguirem mais sustentar as famílias em decorrência disso ou por ganharem tão pouco que vivem sempre na ponta do lápis das contas de casa. De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, a Pnad, feita pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o racismo gera uma diferença salarial de 31% entre negros e brancos.
“No Brasil, a questão racial está muito vinculada às questões socioeconômicas. Por isso que nós vamos encontrar entre as pessoas sem autonomia financeira uma grande parcela de negros e negras. Construir essa autonomia através da oportunidade de estudos, trabalho, de acesso aos bens de consumo e aos serviços é também uma forma de enfrentar o racismo brasileiro. Embora não seja a maneira de eliminar o racismo, porque há outra raiz, histórica, mas é fazer justiça social”, avalia a coordenadora de políticas para promoção da igualdade racial do Governo do Ceará e mestra em políticas públicas, Martír Silva.
Há ainda o componente educação, impedido a negras e negros durante todo o período escravista, inclusive do ponto de vista legal, quando uma das constituições brasileiras proibia o acesso desses indivíduos a equipamentos de ensino. Precariedade essa que ressoou em gerações e gerações, dificultando a capacitação dessas pessoas e subsequente a ascensão a espaços de poder. Pense: quantas negras são diretoras do lugar onde você trabalha? Elas estão no topo ou nos cargos mais baixos, via de regra nos serviços gerais, recepção, segurança e portaria?
Para negras e negros, ter assegurado o direito à educação básica e cursar ensino superior é mais do que “apenas” estar na escola ou na universidade. É colaborar com a construção de uma autonomia intelectual. Para a narrativa em torno da “benevolência” da princesa Isabel no 13 de maio não ser a única versão dos livros, que povoam salas de aula, bibliotecas, redes sociais e, principalmente, imaginários. “Nós precisamos estar lá, representados, falando sobre nós, sobre as nossas construções e as nossas inteligências. Sobre a nossa visão de mundo. Como um povo que sabe de onde veio e onde vai. Quem tem saber tem poder. Então, nós precisamos apostar nos nossos saberes e fazer frente a esse projeto grande, danoso e perverso que é a colonialidade moderna. Porque aquela abolição de 1888 não corresponde à nossa liberdade. A nossa liberdade passa pela construção de conhecimento”, afirma a assessora de acolhimento dos movimentos sociais no Governo do Ceará e doutora em sociologia, Zelma Madeira.
 O primeiro passo, portanto, é conhecermos nossa própria história. Não a “história dos negros”, como algo apartado do resto do país. Mas a história real do Brasil, cujo sangue negro escorre em solos de luta e corre nas veias de quase 60% da população. “Conhecer a nossa história é um dos caminhos para mudar o rumo de nossas vidas. É, portanto, uma luta constante, como aponta Angela Davis. Muitas mazelas de hoje são fruto de uma abolição inacabada. Por isso, é preciso que a gente lute cada vez mais e com força pela garantia dos nossos direitos”, sentencia a doutoranda em História Social, quilombola Ana Maria Eugênia da Silva (foto).
O primeiro passo, portanto, é conhecermos nossa própria história. Não a “história dos negros”, como algo apartado do resto do país. Mas a história real do Brasil, cujo sangue negro escorre em solos de luta e corre nas veias de quase 60% da população. “Conhecer a nossa história é um dos caminhos para mudar o rumo de nossas vidas. É, portanto, uma luta constante, como aponta Angela Davis. Muitas mazelas de hoje são fruto de uma abolição inacabada. Por isso, é preciso que a gente lute cada vez mais e com força pela garantia dos nossos direitos”, sentencia a doutoranda em História Social, quilombola Ana Maria Eugênia da Silva (foto).
Assim, e só assim, apropriadas de todas as dimensões que as compõem, livres de amarras físicas e simbólicas, pessoas negras vão olhar para si com mais ternura nessa luta contra o racismo, que não é só delas. É de pessoas brancas também. Mas, para isso, é preciso que outras abolições aconteçam. Uma revolução atravessada também pelo amor. “Historicamente, a população preta foi impossibilitada de viver seus sentimentos e emoções de forma plena e genuína. O amor não fazia parte de uma demonstração livre de afeto. Hoje, o amor é sinônimo de resistência, força, coletividade e, sobretudo, cura. Então, vamos viver o amor, o amor com o nosso povo, e olhar com esses olhos de afeto. Como diz bell hooks: ‘amor é cura’”, ensina a psicóloga Layza Lopes.
 
 
 
        