Mudança de nome e gênero para pessoas trans e travestis é possível mesmo após a morte
Apesar de possível em vida, nem sempre a mudança de nome e gênero na certidão de nascimento de transexuais e travestis acontece. Mesmo com a adoção de nome social, muitas pessoas nesta condição não conseguem retificar sequer a documentação básica, atravessam uma vida inteira sendo desrespeitadas nas suas identidades e assim permanecem até depois da morte. Morrem, portanto, duas vezes: no corpo e no imaginário.
Esse tipo de situação, porém, pode tomar outros rumos no Brasil diante da possibilidade jurídica de o processo de retificação documental de pessoas trans acontecer mesmo após o óbito do indivíduo em questão. Foi o que aconteceu este ano com uma jovem trans do Rio de Janeiro. O caso de Samantha abre, então, caminho para outras ações do tipo existirem no país a partir da mobilização das famílias.
“A pessoa morre duas vezes: pelo não direito de existir, passando uma vida toda sem efetivamente ter o seu direito à identidade reconhecida para poder exercer em toda a plenitude a sua cidadania, e num outro momento a pessoa morre e o nome na lápide também está equivocado, com ela passando a eternidade neste equívoco. A gente, enquanto Defensoria, enquanto instituição de garantia de direitos, pode estar nesse processo de assegurar essa cidadania”, afirma a defensora geral Elizabeth Chagas.
Supervisora do Núcleo de Direitos Humanos e Ações Coletivas (NDHAC) da Defensoria Pública do Ceará (DPCE), Mariana Lobo explica: “É importante que essa pessoa tenha iniciado esse processo de mudança do nome e gênero ainda em vida e feito sua autodeclaração. Isso é um direito inerente à personalidade. Então, quem deve dizer como se identifica e como quer ser chamada é a própria pessoa. Se ela deu entrada nesse procedimento e veio a óbito, é importante assegurar esse direito porque é um resgate da dignidade dessa pessoa, de como ela se socializa e todos os direitos inerentes à personalidade dela.”
Foi o que aconteceu no caso da jovem transexual do Rio de Janeiro. Samantha desejava alterar o registro e deu o pontapé para participar de uma ação de requalificação civil de transexuais e pessoas não-bináries da Defensoria Pública daquele estado. Mas morreu antes de finalizar a inscrição e ser contemplada no mutirão. A família, então, decidiu respeitar a vontade da filha e lutou para modificar tanto a certidão de nascimento quanto a certidão de óbito.
O caso foi assistido pela DPRJ e julgado em 19 de maio, obtendo sentença favorável ao reconhecimento legal da identidade de gênero e retificação de nome após a morte. A conquista, no entanto, ainda é exceção à regra. A maioria das pessoas trans e travestis têm suas identidades violadas até depois da morte. Segundo a Associação de Travestis e Mulheres Transexuais do Estado do Ceará (Atrac), são comuns os relatos de famílias que não respeitaram a memória do indivíduo e procederam o enterro com nome, roupas e história de um corpo biológico desconforme o modo como a pessoa se via e expressava sua personalidade.
Para a presidenta da instituição, Andrea Rossati, ter nome e gênero retificados no registro civil é uma conquista que resgata cidadania e valoriza essas pessoas, mesmo quando a alteração se dá somente após a morte. “É o Estado reconhecendo o dever de oficializar as identidades dessas pessoas. Um resgate imensurável para a nossa cidadania. É necessário reconhecermos que ainda precisamos fazer justiça em relação à necessidade de viabilizarmos as retificações de nome e gênero de todas aquelas pessoas trans que já faleceram e não conseguiram em vida a retificação dos seus nomes e gêneros, resgatando sua cidadania, respeito e seus reconhecimentos de suas identidades pós-morte.”
Poucos são os estados brasileiros que dispõem de alguma legislação para a garantia da retificação registral sem o indivíduo estar vivo. Levantamento feito pela revista Piauí com as prefeituras das 26 capitais brasileiras e o Distrito Federal expõe que apenas São Paulo, Brasília e Palmas têm marcos legais sobre reconhecimento da identidade social em cerimônias de velório, sepultamento e cremação. Ou seja: sem uma legislação para proteger e garantir que pessoas trans e travestis possam ser enterradas tendo suas identidades de gênero respeitadas, o mais comum é repetir a identificação civil da pessoa, aquela que consta nos documentos oficiais.
Conforme a Atrac, o Ceará ainda não tem casos de pessoas trans e travestis que tenham conseguido mudar nome e gênero após a morte. Às famílias que têm o objetivo de consumar o anseio dos filhos e/ou pais e dar continuidade ao procedimento mesmo após a morte deles, é necessário que os parentes se habilitem no processo de ratificação iniciado pela pessoa com a seguinte documentação: certidão de nascimento e atestado de óbito. Com a conclusão do processo, a família pode requerer na Justiça – por constituição de advogado particular ou assistência da Defensoria Pública – as alterações nas certidões de nascimento e óbito.
Já para as pessoas transexuais e travestis que querem alterar nome e gênero nos documentos, é possível fazê-lo de forma extrajudicial, procurando um Cartório de Registro Civil, ou com o apoio da DPCE, caso não disponha de recursos para o pagamento das taxas cartorárias. Já menores de idade e pessoas não-bináries ainda precisam ingressar com ações judiciais para terem o direito assegurado. A Defensoria atua em todos os casos.
Com o intuito de facilitar o acesso a esse serviço, a Defensoria Pública do Ceará promove no próximo dia 30 de junho o Transforma, primeiro mutirão de retificação de nome e gênero de pessoas trans e travestis do Ceará. Neste dia, a instituição entregará em Fortaleza, Sobral e Juazeiro do Norte os novos registros civis de quem solicitou participação na força-tarefa e teve a inscrição deferida. Além disso, a DPCE ofertará atendimento às pessoas trans e travestis que não participaram do mutirão e ainda desejam mudar os documentos.
Famílias que tenham perdido parentes trans e desejem dar continuidade aos processos de retificação mesmo após a morte deles também poderão procurar a Defensoria no dia do mutirão. “O direito de a pessoa dizer quem é ou foi, o direito de ser reconhecida socialmente e ser tratada assim é o direito mais básico de qualquer pessoa. Quando a gente inicia esse processo e as pessoas recebem a certidão de nascimento com o nome e o gênero alterados, elas dizem: “eu nasci hoje, porque hoje a minha documentação reflete quem eu sou”. É importante assegurar a dignidade dessa pessoa, seja em vida ou após a morte”, finaliza a defensora Mariana Lobo.
SERVIÇO
I MUTIRÃO DE RETIFICAÇÃO DE NOME E GÊNERO DE PESSOAS TRANS E TRAVESTIS
Fortaleza
Quando: 30 de junho
Local: Sede da Defensoria (Av. Pinto Bandeira, nº 1.111, Luciano Cavalcante)
Palestra gratuita da Neon Cunha 14h
Entrega das novas certidões a quem participou do Transforma
Mutirão de atendimentos para dar entrada em novas ações em Fortaleza – 13h às 17h
Sobral
Quando: 30 de junho
Local: Sede da Defensoria (Av. Monsenhor Aloísio Pinto – Dom Expedito)
Entrega das novas certidões a quem participou do Transforma – solenidade 9h
Mutirão de atendimentos para dar entrada – 8h às 12h
Juazeiro do Norte
Quando: 30 de junho
Local: Unifap (Rua Conceição, 1228 – São Miguel)
Entrega das novas certidões a quem participou do Transforma – solenidade 9h
Mutirão de atendimentos para dar entrada em Juazeiro- 8h às 12h

