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“A gente mora dentro da gente”: Defensoria lança campanha sobre desafios de alcançar direitos para as pessoas em situação de rua

“A gente mora dentro da gente”: Defensoria lança campanha sobre desafios de alcançar direitos para as pessoas em situação de rua

Publicado em
 Texto: Déborah Duarte
FOTOS: ZE ROSA FILHO  /
Ilustração: Diogo Braga


Para uns, invisíveis. Para outros, inconvenientes.  Por vezes, até o poder público age para este apagamento: nos grandes eventos são levados para locais para conferir a ‘higienização social’ das ruas. Merecedores de afeto apenas em datas comemorativas, como Dia das Crianças e Natal, datas nas quais a sociedade costuma prestar um pouco de atenção nas cerca de 8 mil pessoas que vivem nas ruas e praças da capital, Fortaleza. Passado o espírito solidário, a indiferença de novo. Em pesquisa em 2022, a  Fundação da Criança e da Família Cidadã da Prefeitura de Fortaleza (Funci) identificou 390 pontos na capital onde pessoas em situação de rua ficam, se abrigam e, por vezes, moram.

“Eu nem lembro mais exatamente quanto tempo eu vivo na rua, mas já passou de 15 anos”, a frase é de seu Antonio, de 61 anos. Ele mora entre as praças e ruas do Centro de Fortaleza e fala com muito orgulho da época de trabalho como caminhoneiro quando criou os cinco filhos viajando por todo o Brasil. “Até hoje minha carteira de habilitação está válida, eu dirigia uma carreta grande, com carga pesada e cara, pro país inteiro. Transportava passageiros também, ônibus de turismo com 50 pessoas. Mas hoje, o emprego que é bom nada. Patrão nenhum quer dar confiança”, lamenta.

Foi nessa época que Antônio começou a ingerir medicamentos para suportar as  jornadas de trabalho extenuantes. “Eu tomava o rebite e ainda bebia. Naquela época não tinha essa fiscalização como tem hoje. O importante era entregar a carga, independente de como você fazia isso”, lembra. 

O popular rebite é a base de anfetamina, uma substância inibidora do sono. Foi nessa época que começou a dependência química. Hoje, a casa dele é a rua: dorme nos bancos das praças ou debaixo de uma marquise quando começa a chover. Ele é acompanhado pelo CAPS , vai periodicamente para as consultas com a assistente social, psicóloga e psiquiatra, recebe a medicação e ainda é beneficiário de programa federal de transferência de renda. Mas não consegue sair do ciclo.

“Tenho muito desvio de mente, esquecimento. Falei com uma moça da Defensoria, mas já não lembro direito o que ela disse. Quero sair da rua, pra viver em um canto com dignidade e parar de estar dormindo em papelão. Eu tenho cinco filhos, criei com meu emprego de caminhoneiro, mas eles não querem mais saber de mim, porque acham que eu vivo assim porque eu quero. Na verdade, eu sou dependente químico, não consigo viver mais sem a droga e preciso da ajuda. Infelizmente é essa a minha situação. E é triste”. 

O diálogo com o homem aconteceu na manhã de um domingo (19), na Praça do Ferreira, no Centro de Fortaleza. Ele estava lá para buscar atendimento da Defensoria Pública do Ceará, exclusivo para pessoas em situação de rua. “Eu dirigia caminhão maior do que esse daí”, comenta o homem na despedida com olhar saudoso (e triste). 

Desde 2002, com a Lei 10.448, ficou instituído uma tradição na Defensoria Pública em todo o país:  comemora-se no dia 19 de maio o Dia Nacional da Defensoria Pública. A data é uma referência ao Santo Ivo, conhecido na tradição católica como o defensor dos necessitados, dos órfãos, e padroeiro dos advogados. Sempre neste mês de maio, nacionalmente, a Associação Nacional das Defensoras de Defensores Públicos (Anadep) e o Conselho Nacional Defensores e Defensoras Gerais (Condege) promovem uma campanha para reforçar a garantia de direitos humanos. Neste ano, o tema da ação é “Um novo presente é possível: Defensoria Pública pela superação da situação de rua”. 

Aderindo às ações nacionais, a Defensoria Pública do Estado do Ceará (DPCE) lançou a campanha “A gente mora dentro da gente”, cujo foco é promover um olhar sensível para as pessoas em situação de rua, com educação em direitos e mostrar que a instituição está comprometida em garantir que essas pessoas tenham ssua voz ouvida, independentemente da época do ano ano. 

A campanha tem ações concentradas em maio pelo Brasil, mas em Fortaleza o atendimento da população em situação de rua é mensal e feito nos equipamentos da rede de proteção. “Garantir os direitos da população em situação de rua é uma prioridade. Trabalhamos incansavelmente para assegurar que esses indivíduos tenham acesso à justiça, saúde, moradia e outros direitos fundamentais. Nossa parceria com outros órgãos, como assistência social, saúde pública e organizações da sociedade civil, é crucial nesse processo. Além disso, há a união de outros núcleos da Defensoria durante essas ações concentradas e juntos, podemos identificar necessidades específicas e implementar soluções que melhorem significativamente a qualidade de vida dessas pessoas”, pontua Mariana Lobo, supervisora do Núcleo de Direitos Humanos e Ações Coletivas da DPCE.

Para a defensora pública, é necessário um esforço contínuo das autoridades para enfrentar essa questão de forma integral e solidária. “A Defensoria tem trabalhado com a Secretaria de Proteção Social e Secretaria dos Direitos Humanos, tanto municipal como estadual, na perspectiva do fortalecimento dessas políticas, porque é importante a compreensão da necessidade de acolhimento, muitas vezes, alinhadas a um programa de saúde, porque essas pessoas necessitam de uma assistência para reconstruir os vínculos familiares e os vínculos sociais”, complementa Mariana.

Aporofobia – A filósofa espanhola Adela Cortina cunhou o termo aporofobia, que, do grego, dá nome ao medo e rejeição à pobreza extrema. O conceito vigente e sempre defendido por estudiosos e figuras públicas como padre Júlio Lancelotti fala de forma direta como as pessoas em situação de rua são vistas, inclusive pelo poder público. A Defensoria tem dialogado sobre isso nos processos de ‘requalificação de espaços urbanos’ para que seja feito um relatório social das pessoas atingidas e apresentadas as ações que serão realizadas para atender as suas demandas. Também frisa que não se utilize técnicas de arquitetura hostil contra as populações em situação de rua, bem como faça um levantamento das barreiras e equipamentos que dificultam o acesso a serviços públicos, elencando ainda soluções para corrigir eventuais problemáticas.

“Os municípios precisam entender que essa população tem necessidades específicas e precisa atender isso com respeito a dignidade. Acesso aos postos de saúde, disponibilizar bebedouros, banheiros públicos, lavanderias sociais, dormitórios, remédios e, inclusive, promover a capacitação dos agentes que atuam no atendimento são prioridades para nós que integramos a rede de proteção de direitos humanos”, pontua a supervisora Mariana Lobo. “A nossa Constituição fala da universalização dos direitos entre todas as pessoas, mas isso não significa que todo mundo deve ser igual, as pessoas precisam receber aquilo que precisam. As políticas públicas devem alcançar esta equidade em direitos”, finaliza.

 

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