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“Foi uma injustiça o que fizeram comigo, mas eu sempre tive esperança de que iria sair”, diz mãe presa

“Foi uma injustiça o que fizeram comigo, mas eu sempre tive esperança de que iria sair”, diz mãe presa

Publicado em
Texto: Bruno de Castro
Foto: ZeRosa Filho

Era antevéspera de Natal. Edilene Rodrigues, então com 42 anos, fazia planos de como celebraria a data. Não imaginava – nem tinha elementos para isso – que naquela noite seria colocada atrás das grades por um crime que não cometeu (e havia acontecido quase uma década antes). Enquanto o mundo começava a desacelerar de uma pandemia letal naquele fim de 2021, a auxiliar de costureira agarrava-se à urgência de provar a própria inocência.

“Eu sabia que existia um processo. O que não sabia era que eu era quem estava devendo algo pra justiça. Fui presa sem saber do que se tratava. Tento entender, e não consigo, por que fizeram isso comigo. Quem tinha que ser preso era aquele monstro”, reflete. O monstro ao qual ela se refere é o ex-namorado, Marcos Ferreira da Silva, com quem esteve por dois anos e estuprou uma das filhas de Edilene, fruto de outro relacionamento, em 2012. A garota tinha 12 anos.

Ambos foram condenados. Ele a 14 anos, pela consumação do ato; ela, Edilene, a nove anos e quatro meses, acusada de se omitir diante do crime por não ter registrado Boletim de Ocorrência de forma imediata. Para a justiça, era como se a mulher soubesse de tudo e tivesse tentado proteger o estuprador. E, assim, Edilene passou de arrimo de família, mãe trabalhadeira que sustentava sozinha cinco crianças com um salário suado de carteira assinada na Serrinha, periferia de Fortaleza, a ré de um crime hediondo.

“Ele [Marcos] se aproveitou da minha confiança e da minha ausência, porque eu passava o dia no trabalho. Quando eu soube [do estupro], fiquei sem chão. Mas reagi. Fui no bar que ele tinha perto de onde eu morava e o pessoal precisou separar a gente, de tanto que eu tentei bater nele. Terminei o namoro imediatamente, proibi minha filha de ter qualquer contato com aquele monstro e mudei de endereço. Fiz de tudo, mas me puniram mesmo assim”, resume.

Foram 946 dias na prisão. Entre 23 de dezembro de 2021 e 3 de agosto de 2024, quando saiu da penitenciária graças à atuação da Defensoria Pública do Ceará (DPCE) em parceria com o Innocence Project Brasil, Edilene passou na cadeia noites de Natal, réveillons, dias das mães, aniversários dos filhos e tantos outros ritos importantes para uma família na qual ela era o centro. Na Unidade Prisional Feminina (UPF) Desembargadora Aury Moura Costa, porém, dividiu uma cela de apenas 2,5 metros com outras nove mulheres. Era apenas mais uma.

Inocente, foi forçada a sobreviver neste ambiente, no qual conviveu forçosamente com outras pessoas que desconhecia. “Foi um período de muita aflição. A prisão não é um ambiente bom. Não é um ambiente agradável. Apesar de nunca ter sido ameaçada por nenhuma outra detenta ou guardas, ficar lá teve um custo alto pra mim. Perdi meu emprego, perdi a chance de acompanhar a infância do meu neto e perdi minha mãe, que foi o mais doloroso. Tem que ter muito Jeová Deus no coração pra suportar”, lembra Edilene.

Agora, fora da prisão e com a ficha limpa depois de ter a inocência provada perante a justiça, a auxiliar de costureira dá passos rumo a um futuro no qual retoma, de cabeça erguida, sem constrangimentos, as rédeas de uma vida que, com sorte, só sentiria o gostinho da liberdade lá pelos idos de 2030. Edilene já está de emprego novo. Faz parte da instituição que a livrou do pesadelo de permanecer em um confinamento injusto.

Colaboradora do Núcleo de Assistência ao Preso Provisório (Nuapp) da DPCE, ela trabalha com o defensor que lhe tirou das costas a condenação. Ao lado dele e de uma equipe técnica, luta pela soltura de outras pessoas internas do sistema penitenciário cearense. De homens e mulheres, sobretudo de periferia, com os quais identifica-se por enxergar em muitos processos injustiças similares às que viveu. E só saiu da cadeia por perseverança da filha.

Sim, foi graças à insistência de uma garota, física e emocionalmente marcada pela violência de um abusador e pelo peso de um julgamento equivocado, mas cuja sede de justiça era muito maior, que Edilene teve chance de recomeçar. Quantos por aí não têm? Ela sabe disso. “Nós sofremos juntas uma caminhada longa, mas aqui fora minha filha não descansou enquanto não garantiu os meus direitos. Ela é uma heroína! Minha heroína”, orgulha-se.

E acrescenta: “sou uma cidadã que sempre trabalhou de carteira assinada e pagou impostos. Então, imagine o constrangimento de me ver na prisão! Por isso, enxergo o trabalho na Defensoria como uma oportunidade que me deram para recomeçar, ao mesmo tempo em que luto por justiça para outras pessoas. Porque foi uma injustiça o que fizeram comigo, mas eu sempre tive esperança de que iria sair.”