
Defensoria consegue desarquivar processo e pedido de indenização à família de Tico, assassinado em 2014, terá que ser analisado pela justiça
Texto e Fotos: Bruno de Castro
Prestes a completar 80 anos, dona Francisca Costa de Souza consegue novamente acreditar na possibilidade de ser indenizada pelo assassinato do filho, o pedreiro Francisco Ricardo Costa de Souza, o Tico. Mais um homem negro vítima da violência do Estado em um país no qual, segundo o Anuário de Segurança Pública, negros têm quase quatro vezes mais chances de serem mortos pela Polícia do que brancos. “O presente mais importante esse ano foi essa reviravolta no julgamento. Agradeci a Deus por essa oportunidade e confio que vai dar tudo certo. Não traz ele de volta, mas a gente tem muito sonho do que fazer com esse dinheiro”, revela a idosa.
O crime ocorreu em fevereiro de 2014, no bairro Maraponga, em Fortaleza, quando Tico foi abordado por policiais no trajeto para almoçar na casa da mãe, com quem morava. Nas horas seguintes, com sinais de tortura e grave espancamento, ele morreu. Mas só agora, quase 11 anos depois, o caso se encaminha para um possível desfecho favorável à família – que em 2016 já viu os três militares acusados do crime serem inocentados por um júri popular.
Alguma reparação agora é possível porque a Defensoria Pública do Ceará conseguiu reverter a extinção do processo que pedia reparação de danos aos parentes de Tico. A ação foi protocolada pela Rede Acolhe, projeto da DPCE que atende familiares de vítimas de crimes violentos, em maio deste ano e extinta pelo juiz dias depois sob o argumento de o crime ter prescrito. Ou seja: o magistrado compreendeu que já havia passado tempo demais desde a morte do pedreiro para a família reivindicar uma indenização do Estado.
A Defensoria recorreu dessa decisão e levou o caso ao Tribunal de Justiça do Ceará (TJCE), que acatou integralmente a tese de que alegar “prescrição” para pedido de reparação de dano não se aplica ao caso de Tico. Na ação cível, a DPCE pede indenização de R$ 7 milhões para dona Francisca, a mãe, e os seis irmãos de Tico. O valor deve ser pago pelo Estado, já que policiais – ou seja: agentes públicos de segurança – teriam sido os autores do assassinato.
“O Estatuto de Roma e a Súmula 647, do STJ, estabelecem que crimes de tortura não prescrevem. Então, a indenização pode ser concedida a qualquer momento. Diante da violência policial que tem crescido no Brasil, esse julgamento é um importantíssimo precedente para garantir a justiça social e a dignidade humana no Ceará. A gente sabe que a vida humana não tem preço, mas a indenização será uma forma de minorar a dor da família. Vai mostrar que o Estado será punido de alguma forma e esses crimes não ficarão impunes”, avalia a defensora Andréa Coelho, que atuou no Segundo Grau em favor da família de Tico.
Com a decisão do TJCE, a qual ainda cabe recurso por parte do Estado, o juiz que extinguiu o processo de indenização feito pela Defensoria será obrigado a reabri-lo e julgá-lo. “A gente pediu a reparação pelo dano moral, que é a indenização, a reparação pelo dano material, na forma de pensão à mãe, e a reparação de dano não pecuniário, que envolve um ato simbólico com a construção de um memorial e o tratamento de saúde mental da família. Reconhecer que tudo isso deve ser julgado, como o TJCE fez, e pode ser concedido à família do Tito, caso o juiz acate os pedidos, abre a possibilidade para acontecer o mesmo em outros casos de vítimas de tortura nos quais os parentes nunca buscaram indenização. Porque, via de regra, com medo, as pessoas silenciam sobre crimes cometidos por policiais”, frisa a defensora Gina Moura, autora do pedido pela Rede Acolhe.
VINGANÇA NÃO; JUSTIÇA, SIM
Uma das irmãs de Tico, a trancista Antônia Costa de Souza, de 44 anos, revela que a família está feliz com a retomada do julgamento. Contudo, todos estão também ansiosos com a possibilidade de uma nova derrota, visto que os acusados do crime já foram inocentados – resultado esse, inclusive, com o qual ela não concorda, não se conforma e pretende denunciar em organismos internacionais de direitos humanos a partir da apresentação de novas provas e testemunhas.
“A morte do Tico foi como se a gente estivesse no tempo da ditadura. Sequestraram, espancaram e jogaram ele no mato com costela quebrada, braço quebrado, dentes quebrados, cabeça partida no meio, baço pra fora, testículos esmagados… Encontraram ele quase morto. Foi só o tempo do meu irmão dizer pra não chamarem a Polícia porque tinham sido policiais que fizeram isso com ele. Os mesmos soldados que fizeram essa barbaridade foram os que jogaram ele no hospital. São quase 11 anos de muita luta”, afirma Antônia.

À época do assassinato, Tico tinha 42 anos. Deixou cinco filhos. E a família ficou completamente adoecida como efeito colateral do crime, vivendo em condições precárias no bairro Jardim Cearense. Com a indenização, a ideia é levar dona Francisca, a mãe, para viver em outro lugar, com mais dignidade. “A gente não queria esse dinheiro, mas minha mãe está idosa. Esse dinheiro vai servir pra pagar um tratamento pra ela, que hoje é acompanhada por psiquiatra e toma vários remédios para depressão. Além disso, a gente vai montar uma ONG para ajudar vítimas de violência com atendimento jurídico, médico e psicológico. Não vai trazer meu irmão de volta, mas vai dar algum conforto”, revela a irmã.
Antônia quer que a morte do irmão sirva de exemplo para outras famílias não serem dilaceradas como a dela foi. Para isso, é fundamental que o Judiciário conceda a indenização e realize outro julgamento sobre o caso. “Quando o Tico morreu, a gente fez uma promessa de que ia lutar para que fosse feita justiça do jeito certo. A gente não quer vingança; a gente quer justiça. Enquanto não houver uma reparação e um basta, os crimes cometidos por policiais não vão parar. Eu não quero que a morte do meu irmão caia no esquecimento. Podem passar mais dez anos, mais 20 anos, mais 30 anos, mas a gente só vai parar quando conseguir justiça”, assegura a trancista.
FOTOGRAFIAS NA PAREDE
Enquanto isso, dona Francisca, a mãe de quase 80 anos, segue morando na casa na qual vivia com Tico. Uma construção simples, pequena e sem reboco em muitos locais. Mas com a imagem do pedreiro por todos os lados: na fachada, um desenho dele identifica o imóvel; nas paredes, as mais recentes fotos dele; em um altar improvisado, imagens de Nossa Senhora Aparecida e São Francisco de Assis, santos dos quais era devoto.
A idosa dorme numa cama de solteiro de frente para um grande banner com a foto do filho, no qual se lê: “como diamantes, ficam conosco os momentos bons e os exemplos. Fica a vida resguardada, protegida da morte, pelo amor que há em nossos corações”. Dona Francisca explica: “eu não tiro a foto dele daqui porque eu me conformo de ver ele. Meu filho era meu parceiro e todo sonho que ele tinha eles [os assassinos] tiraram. Natal a gente comemora porque é o nascimento de Jesus, mas as alegrias que a gente tinha aqui quando o Tico era vivo ninguém tem mais. Alegria de nada. Podem passar 100 anos, mas, pra mim, não passa nada. Porque ele tava ali todo o tempo”, resume.

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