
Cem mulheres se formam como as primeiras defensoras populares do Ceará
Texto: Deborah Duarte
Foto: Ari Fontenele
Em uma cerimônia marcada por emoção e simbolismo, no último sábado (26/4), cem mulheres de diferentes regiões do Ceará receberam seus certificados como as primeiras Defensoras Populares do Estado. A solenidade aconteceu em Fortaleza e reuniu autoridades como a secretária nacional de Acesso à Justiça, Sheila de Carvalho; a ouvidora do Supremo Tribunal Federal (STF) e juíza do TJSP, Flávia Martins; a defensora pública geral do Ceará, Sâmia Farias; além de representantes da Unilab, da sociedade civil e do Governo do Estado.
A formação das defensoras populares teve duração de 12 meses e somou 240 horas de encontros presenciais e on-line. A cada aula, temas como direitos humanos, justiça ambiental, racismo, democracia, políticas afirmativas e organização financeira eram debatidos de forma crítica e participativa. Antes da entrega dos certificados, as formandas apresentaram os Planos de Atuação Comunitária (PACs) — trabalhos de conclusão de curso que, em muitos casos, já resultaram em ações implementadas nas comunidades.
Durante a cerimônia, a defensora pública geral, Sâmia Farias, anunciou a continuidade do projeto. “Conseguimos recursos para abrir o edital da segunda turma de Defensoras Populares. Este é um projeto construído a muitas mãos, com o objetivo de fortalecer o acesso à justiça e a cidadania nas comunidades”, afirmou.
A diretora da Escola Superior da Defensoria Pública, Amélia Soares da Rocha, destacou a importância da formação popular: “A Defensoria Pública chegou para abrir a realidade da diversidade em todas as distâncias de poder. Este curso pioneiro cumpre nossa função institucional de promover o conhecimento sobre direitos humanos e cidadania”.
Violeta Hollanda, professora e uma das coordenadoras do programa na Unilab, relembrou a origem do projeto: “Desde seu princípio, o curso foi idealizado para formar lideranças comunitárias capazes de identificar violações de direitos e atuar como multiplicadoras de acesso à justiça”. A seleção priorizou mulheres negras, indígenas, quilombolas, em situação de vulnerabilidade econômica e social, entre outras.
O reitor da Unilab, Roque do Nascimento Albuquerque, também esteve presente e enalteceu o compromisso da universidade com a inclusão e as ações afirmativas. “É um orgulho para a Unilab participar desta transformação social. Vocês podem contar conosco para continuar essa jornada”, declarou.
A emoção tomou conta da ouvidora geral externa da Defensoria, Joyce Ramos, ao saudar as formandas: “Essas Marias aqui não são as que vão com as outras; são Marias lutadoras, protagonistas na luta popular, no território e no movimento”.
Também presente, a secretária estadual de Direitos Humanos, Socorro França, exaltou o simbolismo da faixa lilás nas becas das formandas. “O lilás representa a luta por direitos iguais. Vocês mostram que a mudança é possível através do conhecimento e da união”.
A secretária de Igualdade Racial, Zelma Madeira, reforçou a aposta nas mulheres que vivem “à margem do sistema”, fortalecendo o trabalho em comunidades periféricas e quilombolas. “Essas mulheres trazem projetos coletivos que alimentam a esperança de uma sociedade mais igualitária”, disse.
A juíza Flávia Martins, ouvidora do Supremo Tribunal Federal (STF) e magistrada do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), emocionou o público ao relembrar a trajetória de sua mãe. Ao tomar a palavra, Flávia Martins revelou seu sentimento profundo ao ver na plateia o reflexo de sua própria mãe, uma mulher que devido às limitações de estudo – apenas até a quarta série –, atuou como diarista, manicure e babá. “O sonho dela era ser enfermeira e ela se realizou cuidando das pessoas como vocês cuidam”, afirmou a juíza, com a voz embargada.
A magistrada destacou que sua mãe nunca teve a oportunidade de participar de um projeto como o Defensoras Populares. “Vocês hoje estão se realizando e vão realizar os sonhos dos filhos e filhas de vocês, daqueles que virão depois de vocês. Vocês são a realização desses sonhos. Eles querem ver vocês felizes e eu estou muito emocionada de ver a felicidade aqui nesse ambiente”, disse.
Em um dos momentos mais fortes do discurso, Flávia refletiu sobre os desafios enfrentados pelas mulheres negras e periféricas. “A nossa sociedade não aceita bem ver o sorriso no rosto de uma mulher preta, pobre e periférica. A sociedade não se importa em nos ver felizes. Eu ouvi tanta alegria aqui hoje. Eu sei que vocês já choraram muitas vezes: pela falta de perspectiva, por um filho doente sem dinheiro para o remédio, por pedidos que não puderam atender… Por isso, estar feliz aqui hoje é o mais transformador e desafiador que vocês poderiam fazer”, enfatizou.
A juíza ainda ressaltou a responsabilidade que recai sobre as formandas. “Vocês foram as cem mulheres que aprenderam, que trocaram experiências, que tiveram essa oportunidade. Agora, vocês têm a responsabilidade de colocar outras mulheres aqui dentro. Eu sei que é um peso, mas também sei que vocês são capazes de muito mais. Este é um projeto que se materializa no coletivo”, afirmou, sob aplausos.
A emoção também esteve presente nas palavras de Sheila de Carvalho, secretária nacional de Acesso à Justiça, que comparou as mulheres formandas a águas que, ao se unirem, crescem e transformam a realidade. “Mulheres são como águas. Quando se juntam, crescem. Vocês são sementes de esperança, sementes que vão gerar o impacto da sociedade que a gente sonha. A formatura de vocês me lembra o dia em que alcancei minha graduação em Direito. Assim como meu pai me disse: podem tirar tudo de vocês, menos o conhecimento”, declarou Sheila.
Já a defensora pública geral do Ceará, Sâmia Farias, reforçou o caráter coletivo do projeto. “O projeto Defensoras Populares não é um projeto de uma mão só, é de muitas mãos. Ele aproxima a Defensoria Pública da vivência das comunidades. São essas mulheres que estão construindo pontes entre a população e a Defensoria, ampliando o acesso à justiça e levando cidadania a quem mais precisa”, afirmou.
A cerimônia, além de celebrar as conquistas individuais, reafirmou a potência da organização coletiva e o poder transformador do conhecimento nas mãos de mulheres historicamente silenciadas. Cada sorriso, cada beca vestida, cada diploma entregue representou um grito por justiça, igualdade e dignidade — e o início de um novo capítulo na história das defensoras populares.