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Além da raça e do CEP: mulheres são maiores vítimas da crise climática

Além da raça e do CEP: mulheres são maiores vítimas da crise climática

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Para encerrar a série de reportagens e entrevistas especiais sobre racismo ambiental publicada esta semana, a Defensoria Pública do Ceará discute nesta sexta-feira (23/5) como as vítimas da crise climática têm gênero muito bem definido e o que isso significa para os territórios. Qual a saída? Ou melhor: há saída? Especialistas respondem

 

Texto: Bruno de Castro
Ilustração: Diogo Braga

“Um facão é sempre um facão.
Se eu usar na roça, ele é um instrumento.
Se eu usar numa briga, ele é uma arma.
E ele não é culpado por nada disso.”
(Nego Bispo (1959-2023), liderança ancestral quilombola)

 

Quando a chuva começava a cair na comunidade Boa Vista, em Fortaleza, a mobilizadora social Hozana Lima já sabia: dali a poucas horas, o rio Cocó encheria o suficiente para entrar pela janela de casa. E de nada adiantava colocar a geladeira em cima da mesa ou suspender os outros poucos móveis. De tão alto, o nível da água quase chegava ao segundo andar do beliche no qual os filhos dormiam. Era nele, inclusive, que ela colocava as crianças até algum resgate chegar. Enquanto isso, tudo dentro do lugar era consumido pela enchente.

Hozana sofreu os efeitos de ser uma dona de casa que (sobre)viveu à vulnerabilidade de uma área de risco à beira de um rio enquanto cuidava dos filhos – e, ao mesmo tempo, o companheiro estava no trabalho. Foram 15 anos até sair para um local mais seguro (e se deparar com outras demandas e outras lutas). “Era um sufoco, porque a água dava no pescoço. Mas a errada não era a água. Nós que não tínhamos pra onde ir e morávamos na beira do rio por necessidade e falta de apoio. Rio é rio. A natureza estava no canto dela. Mas todo mundo era resgatado e voltava assim que o rio baixava. Essa situação é generalizada nas periferias”, diz.

Histórias como a de Hozana expõem o quanto vai além da raça e do endereço o impacto do racismo ambiental sobre as pessoas que moram nos locais mais afetados pelo descaso do poder público no tocante às questões da natureza. Além de negras, as principais vítimas dessa dinâmica têm gênero. São, em maioria, mulheres, sobretudo as periféricas em centros urbanos, as quilombolas e as pertencentes a comunidades tradicionais (de pescadores, marisqueiras, ciganos, ribeirinhos), além das indígenas.

Ou seja: se você é homem, sofre os efeitos do racismo ambiental de uma forma. Se é mulher, tudo se manifesta de outra maneira. Se for mulher e negra, tudo é ainda mais forte. Pior. E isso não se dá ao acaso. Muito menos é algo de agora. “Historicamente, as mulheres são mantidas na esfera das questões domésticas e a população negra é excluída dos espaços de decisão. Quem está nos territórios mais afetados pelo racismo ambiental hoje são aquelas pessoas que ficaram sem lugar na democracia brasileira. Quando nós trabalhamos isso a partir dos impactos, percebemos que há um maior empobrecimento das famílias. E isso afeta diretamente as mulheres, porque elas são responsabilizadas pelo que ocorre dentro de casa”, detalha a assistente social Cristiane Faustino.

 

ESTRUTURA DE DESIGUALDADE
Atuante no Instituto Terramar, organização da sociedade civil sem fins lucrativos que trabalha ações de promoção de justiça socioambiental na zona costeira do Ceará, ela alerta para a impossibilidade de discutir racismo ambiental de forma isolada, sem levar em conta que ele é reflexo do racismo como conhecemos na forma original. Isso significa que a lógica de exclusão causada pelos dois é semelhante.

Se, na sociedade em geral, é a mulher negra a mais afetada por preconceitos (já que ela sofre por ser mulher (questão de gênero), por ser negra (questão de raça) e por, geralmente, também ser pobre (questão de classe), quando a questão é ambiental, essa também é a realidade. Mas envolve, como já dito, ainda mais grupos, cujas relações com os territórios são, antes de tudo, existenciais, de afeto. Essas pessoas vivem conscientes de que fazem parte da natureza, e não de que precisam apenas “cuidar” dela.

 

Foto: Tamara Lopes

“A gente não pode passar por cima do que é o racismo e trabalhar só a perspectiva ambiental. É preciso explicar a estrutura de desigualdade, até para não darmos a entender que racismo ambiental é um problema só de negros e indígenas. Há uma construção social racista que situou essas populações em lugares considerados atrasados e até esses territórios reproduzem estigmas que fazem as condições das mulheres serem mais agravadas. Tudo isso sobrecarrega as mulheres adultas nas preocupações e gera um adoecimento mental delas. Porque, por exemplo: se há um agravo na saúde de algum membro da família, elas são responsabilizadas; se há um problema com a juventude, elas são responsabilizadas; se se perde um território e surgem questões de moradia, elas são responsabilizadas. Muita coisa recai sobre as mulheres”, acrescenta Faustino.

 

VIDAS SUBALTERNAS
Para o antropólogo Igor de Sousa, a perspectiva do cuidado com o outro e com os territórios, algo também historicamente associado ao feminino, além de papéis de liderança exercidos por mulheres, colocam-nas em evidência como as figuras mais expostas aos efeitos do racismo ambiental. Por isso, falar desse ciclo é falar de (muitas) perdas.

“A perda de filhos, de maridos, de casas… Se essas mulheres já vivem situações difíceis por questões de gênero e de classe, o racismo ambiental vem, lhes tira recursos e imprime um modo de vida ainda mais precário, mais debilitado. E não só a elas, mas às famílias e às comunidades como um todo. Como o racismo ambiental está diretamente ligado com o racismo institucional, elas são submetidas a dinâmicas que lhes imprimem um ritmo de vida subalterna, marcada pela violência, pela ausência de políticas públicas, pelo subemprego, pela ausência de educação formal…”, avalia ele, que é pesquisador Junior Fellow do Mecila (um centro internacional de estudos avançados em ciências humanas e sociais financiado pelo governo alemão).

Igor aponta o racismo fundiário como outro agravante do racismo ambiental que prejudica a vida das mulheres. Em geral, é no nome delas que o “papel da casa” é emitido em programas de regularização da terra. Quando a questão envolve quilombolas, indígenas, comunidades tradicionais e periferias muito densas, o direito à propriedade individual ou coletiva do lugar é muito mais difícil de ser garantido – ou mesmo é negado a elas.

Para fazer frente a esse racismo ambiental que sufoca mulheres, o antropólogo defende uma política massiva de titularização de terras atrelada a ações que garantam emprego a elas, a implementação de projetos de conservação ambiental e a promoção de modos de vida mais sustentáveis, além de investimentos no combate ao racismo.

 

Foto: Arquivo pessoal

 

“Historicamente, povos e comunidades tradicionais, sobretudo mulheres, têm sido guardiões das florestas, das matas, dos mares… Mas é dar-lhes responsabilidade demais querer que elas sejam a solução para o nosso futuro. Porque essa solução também caminha em torno de diferentes atores assumirem responsabilidades. Envolve governos, parlamentares, setores industriais… A saída pra crise climática é repensar nosso nível de consumo. Dar um protagonismo isolado a mulheres negras e indígenas tende a desresponsabilizar os demais grupos, como se um mundo ecologicamente mais viável dependesse apenas dos povos tradicionais. E não é isso. A gente pode aprender com eles sobre uma outra dinâmica de vida, algo que não seja apenas essa que nós temos, de degradação e injustiça, mas esses modos de vida não podem ser valorizados somente por uma funcionalidade frente ao capitalismo”, alerta Igor de Sousa.

 

NOS BALCÕES DA DEFENSORIA
Na Defensoria Pública do Ceará, (DPCE), os reflexos do racismo ambiental também são sentidos e comprovados quando 70% das pessoas atendidas são mulheres negras de periferia ou de territórios afetados por grandes questões ambientais. Em muitos desses lugares, não há sequer o básico. E elas, arrimo de família que são, ou mesmo mães solo, fazem a instituição, ano após ano, bater recordes de produtividade.

Só em 2024, essas mulheres representaram cerca de 1,4 milhão de procedimentos (dos 1,9 milhão que a DPCE fez ao todo). Elas trouxeram demandas sobre si ou familiares, em especial filhos, pais, irmãos e companheiros. Questões de saúde, por exemplo, estão entre as mais procuradas. E muitas, como vimos na reportagem deste especial na quinta-feira (22/5), são fruto direto do racismo ambiental. Afinal, para a realidade dessas mulheres, saneamento é luxo, remédio no posto é privilégio e tratamento correto de doença é quase milagre.

Isso, na opinião do presidente do Comitê de Promoção e Defesa da Igualdade Étnico-Racial da Defensoria, Leandro Bessa, precisa nos colocar em alerta enquanto sociedade. Porque se a população cearense é 71% autodeclarada negra e, ao mesmo tempo, as desigualdades ainda são tão vistosas e determinantes, o trabalho da DPCE torna-se ainda mais necessário para combatê-las, assegurando a essas mulheres dias com mais dignidade.

 

Foto: ZeRosa Filho

 

“Não há como prestar uma assessoria jurídica de qualidade a uma pessoa vítima de racismo ambiental sem considerar que a realidade dela é atravessada por esse tipo de opressão. Está mais do que evidenciado o quão central é o papel da raça para definir se alguém vai ter mais ou menos direitos violados. Se isso interage com o gênero e coloca mulheres negras, indígenas e de comunidades tradicionais em situações de ainda mais vulnerabilidade, nós precisamos acolher essas pessoas e pensar, junto com elas, em meios de combate ao racismo e estratégias de sobrevivência”, afirma Bessa.

Para Hozana Lima, hoje moradora de uma casa de alvenaria, na qual “tem dias que não vejo nem a chuva”, essa estratégia é auxiliar outras mulheres, igualmente vítimas de racismo ambiental, porque ela própria nunca deixou – nem deixará – de ser, a tentar minimizar os efeitos disso nas vidas delas. A mobilizadora atua em um projeto social no José Walter. Enquanto isso, luta pela garantia de outros direitos (dela mesma e de outras iguais) e deixa os dias de enchentes apenas como lembrança. “Eu hoje amo minha moradia. Não tem dinheiro no mundo que compre meu lar. Eu sair da minha casinha? De jeito nenhum”, conclui.