Decisão do STJ garante registro com gênero neutro e fortalece reconhecimento de pessoas não binárias
Decisão do STJ garante registro com gênero neutro e fortalece reconhecimento de pessoas não binárias
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A Série Cidadania colorida apresenta uma linha do tempo jurídica e social, combinada a relatos reais, direitos assegurados e lutas a conquistar, para mostrar os caminhos dos acesso pleno à cidadania das pessoas LGBT+
TEXTO: JAMILLE BEZERRA E BIANCA FELIPPSEN
ARTE: vALDIR MARTE
Mais uma conquista histórica no campo dos direitos humanos. Em maio de 2025, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) reconheceu, pela primeira vez no Brasil, a possibilidade de registro civil com gênero neutro. A decisão inédita marca um avanço significativo no reconhecimento das identidades e ecoa em uma luta travada no Ceará com protagonismo da Defensoria Pública do Estado.
A autorização judicial para que uma pessoa tenha o gênero neutro em sua certidão representa, na prática, o reconhecimento do direito à existência plena, com dignidade, respeito e visibilidade. A decisão demarca que não deve haver distinção entre pessoas transgêneras binárias — que já podem alterar seus registros civis — e aquelas não binárias, que igualmente têm o direito de ver reconhecida sua identidade autopercebida.
O precedente firmado pelo STJ representa um passo fundamental na construção de uma sociedade mais sensível e atenta à diversidade. “A decisão apenas reafirma o que já está previsto na Constituição de 1988. O Brasil já permitia o reconhecimento em cartório da identidade de pessoas trans binárias, então não cabia ao Superior Tribunal de Justiça negar às pessoas não binárias o direito de também terem sua identidade registrada da forma como se sentem mais confortáveis”, pontuou a defensora pública de segunda grau, Mônica Barroso, que atua nos tribunais superiores, em Brasília.
A ministra Daniela Teixeira, em seu voto, enfatizou o que disse a defensora: a necessidade de garantir respeito e dignidade às pessoas não-binárias. “É o famoso direito à felicidade já chancelado pelo STF [Supremo Tribunal Federal]. A pessoa trans precisa e merece ser protegida pela sociedade e pelo Judiciário. Dar o direito à auto identificação é garantir o mínimo de segurança que pessoas binárias têm desde o nascimento”, afirmou a ministra.
No Brasil, casos como esse começaram a ser deferidos pela Justiça, a partir de 2020. A Defensoria do Rio de Janeiro obteve para Aoi Berriel, naquele ano, a primeira certidão não-binária do país. À época, o magistrado da 1ª Vara de Família da Ilha do Governador invocou o princípio da Dignidade da Pessoa Humana, destacando que a pessoa agênero deve ter o seu direito validado.
No Ceará, as primeiras ações judiciais com pedidos de retificação de gênero para pessoas não binárias foram ajuizadas em 2022 pela defensora pública Mariana Lobo, supervisora do Núcleo de Direitos Humanos e Ações Coletivas (NDHAC) da Defensoria Pública do Estado.
Essas ações estiveram entre as pioneiras no Estado e foram impulsionadas, sobretudo, pela luz dada ao tema com os mutirões anuais de retificação, o Transforma, promovido pela Defensoria Pública do Ceará, desde 2022, com apoio de movimentos sociais, das associações de cartórios de registros civis e da Corregedoria do TJCE. Desde então, já foram ajuizadas sete ações pela Defensoria com esse objetivo, tendo duas ainda em tramitação. Somente em 2024, vieram os primeiros deferimentos, ainda que em segunda instância, consolidando entendimentos favoráveis que contribuíram para a construção do entendimento, agora também no STJ.
Para a defensora Mariana Lobo, as decisões representam o amadurecimento jurídico sobre o tema.
Mariana lobo, supervisora do NDHAC
“A identidade de gênero, que é como eu enxergo a mim mesma, é uma construção social. Ou seja: definir alguém somente pelo sexo biológico ou pelos órgãos genitais é algo ultrapassado. O padrão imposto pela sociedade, de só existir o homem e a mulher, não se aplica mais ao mundo de hoje. Não resta dúvida de que as pessoas podem se identificar de outras formas e principalmente que isso precisa ser respeitado. Nossa Constituição diz que toda pessoa tem direito à identidade. E quem decide que identidade é essa é a própria pessoa, não o Estado”, afirma.
Com base nos artigos 4º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro e 140 do Código de Processo Civil, a ministra Nancy Andrighi lembrou, em julgamento, que a lacuna sobre o tema na legislação não pode deixá-lo sem solução nem ser confundida e nem com a ausência do próprio direito. “Seria incongruente admitir-se posicionamento diverso para a hipótese de transgeneridade binária e não binária, uma vez que, em ambas, as experiências há dissonância com o gênero que foi atribuído ao nascimento, devendo prevalecer a identidade autopercebida, como reflexo da autonomia privada e expressão máxima da dignidade humana”, refletiu a ministra.
Entenda as identidades não binárias – A não binariedade é entendida como um espectro que vai além da divisão tradicional entre masculino e feminino. Assim como entre as cores preta e branca existem diversos tons de cinza, há também múltiplas identidades de gênero que não se enquadram na lógica binária. Pessoas não binárias são aquelas que não se identificam exclusivamente com os marcadores de gênero masculino ou feminino. Elas podem se reconhecer em um gênero neutro, transitar entre gêneros ao longo do tempo, não se identificar com nenhum (como no caso de pessoas agênero) ou combinar características consideradas masculinas e femininas em sua identidade — entre outras possibilidades.
Lembre-se: não binaridade é uma identidade de gênero e não uma orientação sexual.
Linguagem em disputa: o gênero neutro e a inclusão
A disputa por visibilidade e espaço chegou também à língua portuguesa. A gramática normativa reconhece a existência de apenas dois gêneros: o masculino e o feminino. Assim, habitualmente, quando se quer fazer referência a um homem, utiliza-se o pronome “ele”; quando a uma mulher, “ela”. Grande parte dos substantivos e adjetivos acompanha essa flexão de gênero.
A possibilidade de corrigir essa distorção, por vezes, foi levada ao debate público, sobretudo político. Alão Aguiar de Oliveira, mestranda no Programa de Pós-Graduação em Linguística do Departamento de Letras da Universidade Federal do Ceará (UFC) explica que o gênero neutro surge da necessidade de dar existência às pessoas não binárias. “A linguagem neutra é, na verdade, criar pessoas não binárias. E eu não quero dizer que elas não existiam ou não existem! Mas afirmar que para existirmos, temos que nos enunciar, nos dizer. O ‘eu’ só existe quando falamos do eu. Ser é um ato de linguagem, de significação. E é assim que, mais ou menos, vamos negociando, todo mundo, nosso entendimento da realidade, significando conjuntamente o mundo, trocando linguagem, nos comunicando. Para mim, a pergunta é perfeita. E não é nem que gênero é próximo de linguagem, gênero é linguagem”.
Alão explica a diferença entre língua e linguagem, facilmente confundidos. “Esses dois termos, embora frequentemente usados como sinônimos, são diferentes, já que falar em língua é dizer de um sistema organizado, estruturado e social, enquanto a linguagem é um conceito mais englobante, já que é a própria significação. Quando falamos em uma ‘linguagem’ e não em uma ‘língua’, a diferença é bem essa: é sobre significar, construir sentido, dar coerência a um mundo desorganizado e conseguir organizá-lo (ou simplesmente criá-lo) com a linguagem”.
Alão Aguiar de Oliveira, mestranda do Departamento de Letras da UFC
Ainda assim, por ser uma proposta recente, a linguagem neutra provoca desconfiança, resistência e, sobretudo, preconceito.
“O gênero neutro por ser algo tão inovador, trouxe uma discussão muito delicada, especialmente se levado em conta o intenso conservadorismo, essa castidade linguística que se criou e, claro, a rejeição da sociedade contra pessoas trans. Tudo isso trouxe um mote político muito forte e fez com que muita gente criasse esse medo irracional de uma língua em perigo. Virou, no fim das contas, uma agenda política para fazer de algo tão simples, como um grupo de pessoas poder se nomear e se construir numa língua, uma grande ameaça e um motivo de ódio para muita gente”.
Alão, que escolheu o feminino como autodesignação, comenta que há algumas inovações como o uso, por pessoas não binárias, pelos gêneros masculino ou feminino como forma de autodesignação. “Em muito, isso se dá pela dificuldade de adesão das outras pessoas ao gênero neutro, então a comunidade não binária montou essa saída de se representar com algum gênero linguístico já existente, mas refuncionalizado, ou seja, com uma nova função que não a de representar ou falar de homens e mulheres”, aponta.
O debate é sempre importante, especialmente nos campos da educação, saúde, ciência e justiça, pois é dele que nascem os avanços. O maior problema, lembra, é a ausência das próprias pessoas não binárias na construção dessas discussões. “Várias pesquisas, inclusive as mais famosas, de livros publicados, nunca partiram de nenhuma aproximação muito profunda com a comunidade e, consequentemente, temos muitas produções acadêmicas que se repetem no mesmo conteúdo sem trazer o menor aprofundamento e contribuição para a ciência”.
Esse apagamento se estende a outros setores. “Digo o mesmo para o âmbito da saúde, na tentativa de construir tratamentos que consigam gerar soluções de cuidado que se aproximem mais dessa comunidade e da comunidade trans; e na justiça, na legislação de leis, na defesa jurídica dessas pessoas (como recentemente está acontecendo no STF) e na garantia da possibilidade de elas se registrarem, de retificarem administrativamente seus documentos, coisa que ainda não acontece no Brasil. A língua está nesse meio como um grande pontapé, mas precisamos visar mais avanços, construir novas pontes, e para isso é necessário que haja abertura desses setores e da sociedade para um verdadeiro diálogo com o objetivo de realmente garantir essas mudanças. Para o começo que tivemos, eu diria que esse deve ser o próximo passo”, alerta.
Relembre os dois primeiros casos de pessoas não binárias que conseguiram a mudança de registro no Ceará, pela Defensoria:
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