
Saúde e dignidade: os desafios da população LGBT no sistema prisional e para além dos muros
No Mês do Orgulho LGBT*, a Defensoria Pública do Estado do Ceará convida a sociedade a refletir sobre os caminhos da cidadania e da luta por direitos no Brasil. A série especial Cidadania Colorida resgata marcos históricos, relatos reais e avanços conquistados, ao mesmo tempo em que evidencia os desafios que ainda persistem.
TEXTO: TARSILA SAUNDERS, ESTAGIÁRIA DE JORNALISMO SOB SUPERVISÃO
ILUSTRAÇÃO: VALDIR MARTE
Aos 35 anos, muitas pessoas estão no auge da vida profissional e pessoal ou, quando mais novas, sonham com o que serão aos 35. Mas, para uma parte significativa da população LGBT, em especial pessoas trans e travestis, esse número representa um corte: expectativa de vida. De acordo com o Dossiê de Assassinatos da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), o Brasil segue, pelo 16º ano consecutivo, como o país que mais mata pessoas trans e travestis no mundo. Só em 2024, foram 122 assassinatos registrados. Dessas vítimas, 95% eram travestis ou mulheres trans.
Invisibilizadas nas ruas e nos registros oficiais, pessoas trans e travestis carregam o apagamento estendido a sua existência também dentro do sistema de saúde, onde ter acesso a direitos básicos, como a hormonização, se torna uma conquista coletiva.
Mas não só elas. É um reclame de toda a população LGBT a necessidade de um recorte especializado à saúde. No acesso à saúde pública, enfrentam uma série de barreiras estruturais. Embora o Brasil possua, desde 2013, a Política Nacional de Saúde Integral LGBT, a realidade é marcada por depoimentos que relatam a ausência de protocolos específicos, despreparo de profissionais e barreiras de acesso. Esses obstáculos comprometem desde a atenção básica até atendimentos especializados, impactando diretamente no diagnóstico, no tratamento e na promoção da saúde para essa população.
As mulheres lésbicas apontam, por exemplo, o despreparo de profissionais de saúde ao lidar com a temática, sobretudo ginecologistas. Os homens gays encontram o mesmo despreparo ao precisar lidar com questões na andrologia, a especialidade que cuida da saúde do homem. “É importante ressaltar que todos os médicos devem ser capazes de atender a população LGBT, com respeito e sem julgamento, oferecendo um ambiente inclusivo e seguro, sobretudo na rede pública”, é o que aponta a defensora Mariana Lobo, supervisora do Núcleo de Direitos Humanos e Ações Coletivas da Defensoria do Ceará.
Para a população trans e travestis as barreiras prosseguem no acesso ao Processo Transexualizador do SUS, criado em 2008 e redefinido e ampliado em 2013. Essa população continua sendo apontada como a que mais enfrenta dificuldades para acessar os serviços de saúde, da atenção básica à alta complexidade. A hormonização, ou terapia hormonal, é uma intervenção médica que utiliza hormônios para alinhar as características físicas do corpo à identidade de gênero da pessoa. Para muitas pessoas trans, ela é um passo essencial no processo de afirmação de identidade. Ainda assim, antes do acesso institucional, muitas realizavam esse tratamento por conta própria, com uso de medicação sem prescrição ou orientação, o que pode causar graves riscos à saúde física e mental.
O Serviço Ambulatorial Transdisciplinar para Pessoas Transgênero (Sertrans) foi transferido em 2024 para o Hospital Universitário do Ceará (HUC), equipamento da Secretaria da Saúde do Ceará (Sesa). Oferece consultas com especialistas, reposição hormonal, exames laboratoriais e de imagem.
Desde 2017, a Defensoria demanda e cobra do estado a criação e ampliação do serviço, que funcionou no Hospital de Saúde Mental Professor Frota Pinto (HSM). A médica e mulher trans, Alana Maria é clínica geral no ambulatório. “É extremamente gratificante porque pouquíssimas de nós chegamos neste lugar. A gente sabe que mais de 90% da nossa população trans, das meninas trans, estão na rua, na esquina, na prostituição e a gente puder mudar esse estigma e dizer eu sou uma médica. A gente pode chegar aqui também, a gente só não chega quando não tem oportunidade”, enfatiza. Segundo a Sesa, 204 pessoas transgênero serão atendidas no HUC. O atendimento é feito via encaminhamento da Central de Regulação do Estado.
A DPCE também acompanha e articula o fortalecimento dessa política, especialmente na garantia de acesso para pessoas trans em situação de maior vulnerabilidade. Para Mariana Lobo, defensora pública e supervisora do Núcleo de Direitos Humanos e Ações Coletivas, o ambulatório é um exemplo de como o Estado poderia cumprir seu dever constitucional de garantir dignidade. “A população trans ainda enfrenta barreiras para acessar o acesso à saúde. Essas pessoas são historicamente invisibilizadas pelas políticas públicas, especialmente quando estão privadas de liberdade. O que fazemos é garantir que esse direito não continue sendo negado. Encaminhá-las para o Sertrans é uma forma de romper com esse ciclo de exclusão e temos cobrado a ampliação deste público, inclusive ao interior”, afirma.
Atenção específica dentro do sistema prisional
Em 2023, a Defensoria Pública do Estado do Ceará (DPCE) implantou o projeto Aime – Assistência Integral a Mulheres em Situação de Cárcere, com apoio da Secretaria Nacional de Políticas Penais (Senapen). Com atuação em três unidades prisionais — Unidade Prisional Feminina Desembargadora Auri Moura Costa, Itaitinga 5 e Irmã Imelda —, o programa realiza atendimentos processuais e psicossociais voltados para mulheres cis, mulheres trans, travestis, homens trans e pessoas transmasculinas.
Atualmente, 162 pessoas trans estão encarceradas nas três unidades atendidas pelo projeto, que oferece suporte integral a essa população. As ações incluem emissão de documentos, realização de videochamadas com familiares, orientação e apoio jurídico, cuidados em saúde e articulação com políticas públicas para garantir assistência também fora do sistema prisional.

“A presença de pessoas trans no sistema prisional escancara um duplo apagamento. Além da violência estrutural que enfrentam cotidianamente, essas pessoas são empurradas para espaços que não reconhecem suas identidades. O papel da Defensoria é garantir que elas não sejam reduzidas a números e que tenham, mesmo em privação de liberdade, seus direitos respeitados em todas as dimensões: jurídica, social, de saúde e de identidade”, defende Luiza Nívea, defensora pública e titular da 7ª Defensoria do Núcleo de Execução Penal (Nudep).
A defensora Luiza NiveaNa Unidade Itaitinga 5, 68% das internas trans solicitaram a inclusão no processo de hormonização. Na Unidade Prisional Feminina (UPF), esse número chega a 72%. Já na unidade Irmã Imelda, onde a hormonização é ofertada diretamente, o acesso é garantido a todas.
Letícia Nacle, médica ginecologistaAlém do acesso à hormonização, outro desafio recorrente na assistência em saúde à população trans privada de liberdade — e também fora do cárcere — é o cuidado com a saúde sexual e a prevenção de infecções sexualmente transmissíveis (ISTs). Dados de estudos realizados em unidades prisionais no Rio de Janeiro revelam índices alarmantes: 34,4% das mulheres trans encarceradas vivem com HIV, 48,9% com sífilis e 25,4% possuem coinfecções. Esses números apontam também a negligência histórica com medidas de prevenção, testagem e acompanhamento regular, tanto no sistema prisional quanto nas redes de saúde pública em geral.

“É necessário compreender que negar o acesso à hormonização no contexto de privação de liberdade pode trazer consequências graves para a saúde mental. Na grande maioria dos casos, é algo que já era iniciado fora da prisão, muitas vezes sem acompanhamento profissional”, reforça Letícia Nacle, ginecologista responsável por parte dos atendimentos.
As consultas são individuais ou em grupo, com frequência quinzenal. Segundo a médica Letícia Nacle, cerca de 20 atendimentos são realizados por mês, respeitando protocolos nacionais e internacionais de cuidado com pessoas trans. “Eu costumo perguntar às pacientes qual o objetivo delas com a hormonização. Um dia, ouvi de uma delas: ‘me olhar e me reconhecer como a mulher que eu sempre fui’. Essa resposta diz tudo”, compartilha Letícia.
A Defensoria acompanha a política de saúde no sistema prisional, incluindo este tratamento com as pessoas trans. “Assim, o Aime faz essa ponte de apoio com a saúde das mulheres e pessoas trans e permite que a gente empodere essa identidade e garanta direitos básicos para uma população amplamente à margem da sociedade. Poder lidar com essas demandas me modifica também enquanto pessoa e defensora pública”, afirma Luísa Nívea.
Saúde mental importa
A negligência em saúde mental é outro fator de extrema gravidade quando se trata da população LGBT, especialmente de pessoas trans. Estudos indicam taxas muito superiores de depressão, ansiedade, automutilação e ideação suicida entre essas pessoas, resultado de uma trajetória marcada por rejeição familiar, discriminação estrutural, violências recorrentes e falta de redes de apoio. No ambiente prisional, onde essas violências se potencializam, o cuidado psicossocial se torna não apenas urgente, mas essencial para a preservação da vida e da dignidade.
Martin Lopes, psicólogo da equipe do Aime, atua com questões de gênero e transsexualidade há oito anos, além de ser um homem trans. Para ele, o Aime é mais do que um serviço: é um espaço de reconstrução da dignidade em contextos de extrema vulnerabilidade.
“A gente acolhe uma população que já chega com a saúde mental fragilizada, muitas vezes sem rede de apoio, marcada por violências psicológicas sucessivas. O projeto oferece escuta, escolha e nome. E isso, no cotidiano, significa reafirmação de identidade, de humanidade. É cuidado em sua forma mais profunda”, pontua.
Para garantir que o cuidado em saúde não se encerre com a liberdade, as pacientes trans assistidas pela equipe de hormonização também são inscritas, ainda dentro da prisão, no Sertrans e, ao deixarem o sistema prisional, já estão incluídas na fila de atendimento para dar continuidade aos tratamentos.
A subnotificação de violências contra pessoas LGBT — físicas, psicológicas e sexuais — é um problema crônico tanto fora quanto dentro das unidades prisionais. Muitas vítimas evitam formalizar denúncias por medo de represálias, descrédito institucional e revitimização no processo de acolhimento. A ausência de protocolos específicos e de equipes preparadas para lidar com essas situações contribui para perpetuar o ciclo de invisibilidade e impunidade, dificultando também a construção de políticas públicas efetivas de enfrentamento à violência.
Enquanto políticas públicas seguem sendo construídas com lentidão fora dos muros, dentro das unidades prisionais o Aime vai abrindo caminhos para que a população trans e travesti tenha, no mínimo, o direito de existir com dignidade.
Retificação de nome – A retificação de prenome e gênero dentro das unidades prisionais é uma realidade em construção. Na Unidade Prisional Professor José Sobreira de Amorim (Itaitinga 5), 45 das 79 mulheres trans e travestis manifestaram o desejo de alterar seus registros civis. Na Unidade Prisional Feminina, 68% das internas trans também querem formalizar sua identidade nos documentos oficiais. Entre os homens trans e pessoas transmasculinas da mesma unidade, mais da metade busca igualmente esse reconhecimento legal.
Na próxima semana, confira as histórias de casamento LGBT, um direito assegurado por força de resolução da Justiça, mas que ainda carece de legislação e proteção ainda mais segura de direitos e laços