Após quase 70 anos sem certidão, idosa é registrada com apoio da Defensoria Pública
Texto: Amanda Sobreira
Arte: Valdir Marte
Imagine passar quase sete décadas sem existir oficialmente para o Estado. Sem certidão de nascimento, sem identidade, sem nome ou sobrenome. Essa foi a vida de Maria da Imaculada Conceição. O nome foi escolhido por ela mesma, bem como o seu dia do seu nascimento: 8 de dezembro, data em que os católicos comemoram a devoção à santa. O ano é 1957. Mas é uma estimativa, pois dona Conceição também não sabe quantos anos tem, o dia do aniversário e não tem nenhuma lembrança ou informação sobre seus pais.
A vida da Conceição começou a mudar no dia que ela adoeceu. Preocupada, uma vizinha falou para ela procurar um médico e foi aí que percebeu que a idosa não tinha nenhum documento. “Ela disse que não tinha ido ao posto porque não tinha nenhum documento e não seria atendida. Conversando mais, eu entendi que ela não tinha nenhum documento mesmo, nem o registro, nunca teve. Foi quando eu resolvi ajudar e fui com ela à Defensoria Pública”, explica a amiga Cláudia de Araújo.
O caso chegou à Defensoria Pública do Ceará, por meio da sede de Caucaia, que ingressou com ação judicial para lavratura tardia do registro de nascimento. O pedido foi deferido pela Justiça, e desde o último 12 de agosto, dona Conceição tem em mãos a sua primeira certidão de nascimento. “Quando eu nasci, onde eu nasci e quem são os meus pais, eu não sei. Resumindo, eu não sei nem quem sou eu. Eu não sabia, mas agora sei”, alegra-se.
Hoje, Conceição fala em sede de viver. Quer ir ao médico, tomar as vacinas que nunca tomou, estudar e ter acesso a direitos básicos. Depois de décadas de invisibilidade, sente que deixou de ser inexistente para o mundo. “Tanta gente em boas condições passaram pela minha vida, mas ninguém me ajudou com isso. Teve quem prometeu, quem também não voltou, mas a Cláudia me ajudou, eu sou muito agradecida a ela. E agora eu quero ir em uma escola. Eu nunca entrei em uma”, disse esperançosa.
Com a certidão de nascimento finalmente em mãos, Dona Conceição deu os passos seguintes para a existir por completo. Na última semana, recebeu sua primeira carteira de identidade com CPF. O defensor público Fernando Régis, que iniciou o atendimento do caso, ressalta que a situação da dela expõe uma realidade pouco visível, mas urgente, o registro tardio. “Temos uma enorme população fantasma em nosso país, pessoas sem nome, identidade e acesso a serviços públicos, que são verdadeiros sobreviventes e guerreiros. Não sabemos quantas Conceição ainda estão espalhadas, esperando por resgate”, afirmou.
A defensora Beatriz Fonteles, que acompanhou a audiência na Vara Cível de Caucaia, conta que se emocionou quando a assistida contou a história perante a magistrada. Se tratava de uma situação fora do comum. “Foi uma audiência muito sensível. Quando a gente se depara com situações assim, sabemos que pessoas nessa condição extrema de vulnerabilidade, não procuram a Defensoria por conta própria. Só chegam até nós quando alguém se compadece e as traz pelas mãos. Precisamos ampliar as estratégias de busca ativa para alcançar quem sequer sabe que tem direito de existir no papel,” reflete a defensora.=
A atuação da Defensoria nesses casos só é possível em virtude das parcerias institucionais. “A Defensoria busca diariamente assegurar visibilidade a esta população que existe e clama por justiça e dignidade. Centro Pop, Creas, Cartório, Pefoce, Arquivo Público e igrejas, agradeço todos que trabalham em sinergia para devolver dignidade a quem nunca a teve no papel”, expressa o defensor público Fernando Régis.
A data escolhida para ser o aniversário da Dona Conceição, 8 de dezembro, é quando também se comemora o Dia da Justiça. Uma feliz coincidência de quem passou a existir oficialmente justamente na data em que o país celebra a função que deveria garantir dignidade a todos. Mais do que um registro, é uma reparação.
Por que ainda existem pessoas sem certidão no Brasil? – Gratuitos para o cidadão, o registro de nascimento fica arquivado no Cartório de Registro Civil e é a primeira prova de vida da criança (ou, em menores casos, do adulto) perante o Estado. Com ele em mãos, ele é considerado cidadão e existe inclusive na estatística.
Segundo dados recentes do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2023 foram registrados cerca de 2,57 milhões de nascimentos no Brasil, dados estes que saem dos cartórios. O IBGE também considera estimativas de sub-registro (nascidos não registrados), chamados de sub-registro, estimados em 1,31% da população. Pelos dados, 33,7 mil pessoas não foram registrados no período legal estipulado, até março do ano seguinte. A título de comparação, em 2015, no início da série histórica, o número de crianças sem registro estimado era de quase 130 mil recém-nascidos.
Ainda de acordo com dados do IBGE, em 2024, apontam que a cobertura de registro civil de nascimento, no Ceará, é de 96,8%, o que significa que 3,8% dos cearenses não possuem registro, e, por isso, estão impossibilitados de acessar benefícios e serviços de cidadania.
Com registro de nascimento, a criança pode ser matriculada em creches e escolas, tem acesso aos serviços públicos de saúde, além de constar nome, sobrenome, filiação e naturalidade. É também o documento base para a emissão de todos os demais, como RG, título de eleitor e passaporte. Desde 2015, o CPF também é emitido gratuitamente pelos Cartórios no ato de registro de nascimento.
Desde 2019, o Plano Nacional de Registro Civil de Nascimento e Documentação Básica permite que registro tardio seja feito judicialmente ou extrajudicialmente para quem não foi registrado no prazo legal. A Defensoria interpõe ações judiciais neste sentido. Primeiro, ela oficia todos os cartórios de registro civil do município (e do Estado) em buscar do registro de nascimento daquela pessoa. Também é possível acessar sistemas da Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais, o CRC Jud (Central de Informações do Registro Civil), que interliga cartórios de todo o país, permitindo a emissão de segunda via de certidões e a localização de registros em qualquer estado.
O programa Meu Registro, Minha Cidadania, sistema desenvolvido pela Defensoria Pública do Estado do Ceará, registrou 14 consultas de pedidos de primeira via de certidão de nascimento em 2024. As ações foram realizadas em parceria com os CRAS, reforçando a integração entre assistência social e acesso à documentação civil.
