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Dez anos do Curió: o silêncio se transformou em voz coletiva e a transformação da política pública para as vítimas de violência

Dez anos do Curió: o silêncio se transformou em voz coletiva e a transformação da política pública para as vítimas de violência

Publicado em
foto: Zérosa filho

“Todo dia 11 eu estou acordada de madrugada. Isso é muito cruel. É uma dor viva, permanente, latente”, disse em entrevista Edna Souza, mãe de Álef, um dos 11 meninos mortos, entre outros tantos feridos na Chacina do Curió. Na madrugada de 11 de novembro de 2015, a Grande Messejana acordou com os sons de tiros que silenciaram 11 vidas e mudaram o destino de dezenas de famílias.

A Chacina do Curió tornou-se um dos episódios mais tristes da história recente do Ceará.10 anos depois, essas vozes romperam o silêncio da violência de Estado e conseguiram conquistar política públicas, reparação justiça e atenção: uma nova forma das instituições atuarem diante da violência de Estado e da dor de suas vítimas.

Mães e familiares dessas vítimas abraçaram-se em busca de justiça. “Nada vai trazer nossos filhos de volta, mas o meu filho viverá pra sempre na minha luta”, relembrou Edna. Desde 2016, a Defensoria Pública esteve ao lado dessas famílias, prestando assistência jurídica, psicológica e social. O trabalho abrangeu a atuação como assistente de acusação, o ajuizamento de ações coletivas, o acompanhamento psicossocial, o diálogo com programas de proteção e a construção de políticas públicas voltadas à reparação e à memória. “A atuação inaugurou pra gente um novo modo de agir diante da dor de mães e pais por justiça”, afirma a defensora geral do Estado, Sâmia Farias.

Quem está desde o começo desta jornada relembra os passos que foram para chegar ao último júri, com as responsabilização dos responsáveis pela tragédia.  Em 2017, nasceu a Rede Acolhe, primeiro programa do país criado para atender de forma integral vítimas e familiares de crimes violentos. A defensora pública Gina Moura, uma das fundadoras, recorda o contexto da criação. “Havia uma lacuna enorme. O sistema penal se voltava quase inteiramente ao réu, e a vítima era reduzida ao papel de colaboradora, sem escuta, sem acolhimento.

A Rede Acolhe nasceu para preencher essa ausência e construir um espaço de dignidade, memória e reconstrução”, explica. Ela afirma que este protagonismo das vítimas é um marco civilizatório. “Quando a Defensoria atua, transporta a dor e a angústia da vítima para dentro do processo criminal. É uma forma de reconhecer sua experiência como elemento central de justiça, não apenas como fonte de prova”, analisa.

A história do Curió é também a história da transformação da Defensoria. De instituição voltada à defesa jurídica, ela se tornou espaço de escuta, cuidado e reconstrução. Cada ato processual é também um gesto político de reconhecimento da dignidade das vítimas. A defensora geral Sâmia Farias destaca que a atuação transformou a cultura a Defensoria. “A criação da Rede Acolhe simboliza o compromisso de que nenhuma vida perdida será esquecida e de que cada voz silenciada terá quem a represente. Acolher é garantir a integralidade dos direitos, conectar saúde mental, assistência social, proteção e escuta. É compreender que a Defensoria não lida apenas com processos, mas com histórias de dor e reconstrução.”

As mães do Curió se tornaram símbolo de resistência. Em um Estado marcado por desigualdades e violência, elas transformaram o luto em mobilização. De sua força nasceram políticas e programas que hoje estruturam a atuação do poder público no cuidado às vítimas. A mobilização dessas mulheres impulsionou a criação de iniciativas como a Rede Acolhe (Defensoria Pública do Ceará), o NUAVV (Ministério Público) e o Comitê Cada Vida Importa (Alece).

Em 2023, o Governo do Ceará instituiu por lei as indenizações às famílias das vítimas. “O importante é o reconhecimento de que o Estado tem responsabilidade nesse episódio e assumiu voluntariamente o dever de reparação”, reforça Sâmia Farias.

Dez anos depois, as vozes das mães ecoam como memória viva da cidade. Elas ensinaram que justiça não se faz apenas com sentenças, mas com presença, solidariedade e coragem. E que o silêncio que tomou conta da madrugada de 2015 jamais será o último som da história.