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Quinze anos do Estatuto da Igualdade Racial: avanços, desafios e o papel da Defensoria na construção de um Ceará antirracista

Quinze anos do Estatuto da Igualdade Racial: avanços, desafios e o papel da Defensoria na construção de um Ceará antirracista

Publicado em
TEXTO: DÉBORAH DUARTE
ARTES: DIOGO BRAGA

Há quinze anos, o Brasil dava um passo decisivo na luta contra o racismo com a promulgação do Estatuto da Igualdade Racial (Lei nº 12.288/2010), um marco legal que reconheceu oficialmente a necessidade de enfrentar as desigualdades raciais em múltiplas dimensões: política, econômica, cultural e institucional. 

Ao completar uma década e meia de vigência, a importância deste Estatuto torna-se ainda mais evidente. Desde então, o país tem construído um robusto arcabouço jurídico voltado ao enfrentamento do racismo estrutural e à promoção da equidade racial. Ele não inaugura a agenda antirracista no Estado brasileiro, mas foi o primeiro instrumento a reunir princípios e diretrizes de maneira sistêmica.

Foi, portanto, um divisor de águas e estabeleceu diretrizes para políticas públicas voltadas à população negra, reconheceu a importância da cultura afro-brasileira, das comunidades quilombolas e das religiões de matriz africana. Ainda abriu caminho para novas legislações que hoje moldam a luta antirracista no Brasil.

Entre essas conquistas, destacam-se a Lei nº 12.711/2012, das cotas no ensino superior; a Lei nº 12.990/2014, que institui cotas raciais em concursos públicos federais; a Lei nº 14.532/2023, que equiparou a injúria racial ao crime de racismo, tornando-o inafiançável e imprescritível; a Lei nº 14.553/2023, que determinou a coleta e uso de dados étnico-raciais em políticas públicas; e a criação do Ministério da Igualdade Racial (2023), que devolveu protagonismo institucional à pauta no governo federal.

Essas normas, contudo, não surgiram do acaso: são fruto direto da mobilização dos movimentos negros e antirracistas que, há décadas, denunciam o racismo estrutural e reivindicam reconhecimento, reparação e representatividade.

Em que medida o país tem conseguido transformar esses avanços legais em mudanças estruturais e perceptíveis na vida da população negra?

Para a secretária da Igualdade Racial do Ceará, a primeira a ser instituída no Estado, Zelma Madeira, o Estado tem avançado de maneira significativa nos últimos anos. Segundo ela, o Ceará se tornou referência em políticas afirmativas, com legislações próprias que asseguram cotas raciais tanto no ensino superior quanto nos concursos públicos estaduais.

“O Ceará conta com a Lei nº 16.197/2017, que garante a entrada de alunos pretos e pardos nas universidades estaduais, e a Lei nº 17.432/2021, que reserva 20% das vagas nos concursos públicos do Executivo para pessoas negras. Isso representa um passo histórico no enfrentamento das desigualdades raciais no mercado de trabalho e no ensino superior”, destaca Zelma.

A secretária ressalta que, para além das leis, o governo estadual incorporou o combate ao racismo como diretriz de gestão. O Plano Plurianual 2023-2026 inclui metas e orçamentos específicos voltados à equidade racial, com ações transversais entre secretarias. “Temos um orçamento sensível a gênero e raça, o que compromete as secretarias com metas explícitas de promoção da igualdade racial. Essa gestão transversal é essencial para que o tema saia do discurso e se torne prática cotidiana”, explica.

Entre as iniciativas recentes, Zelma cita ainda a criação da Delegacia de Combate ao Racismo e à Intolerância Religiosa (DECRIM) e o fortalecimento do Festival Afrocearensidade, que chega à terceira edição e simboliza o protagonismo da população negra no Estado. “Queremos que o Novembro Negro seja a culminância de um trabalho que acontece o ano inteiro. O combate ao racismo não é sazonal. É um compromisso permanente”, reforça.

Apesar dos avanços, Zelma aponta que a efetivação das leis ainda enfrenta obstáculos. “O racismo institucional e estrutural é o grande desafio. Ele atravessa as instituições e as políticas públicas. É preciso vontade política e transformação cultural para que essas leis não fiquem apenas no papel”, afirma.

No Ceará, a Defensoria Pública do Estado (DPCE) tem sido parceira estratégica nesse processo. Além de atuar diretamente na defesa de vítimas de discriminação racial, a instituição vem implementando políticas internas de representatividade e formação antirracista. 

Em 2025, uma nova Lei Federal nº 15.142 redefiniu a política de cotas no serviço público e ampliou para 30 por cento o percentual destinado as cotas. A norma estabelece a seguinte distribuição: 25% das vagas para pessoas pretas e pardas, 3% para indígenas e 2% para quilombolas. A lei foi sancionada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva e marca uma nova virada na política nacional afirmativa.

No Ceará, esse patamar já vinha sendo praticado desde a sanção da Lei Complementar nº 252/2021, que instituiu no âmbito da Defensoria Pública uma política própria de reserva de vagas. A norma estadual já fixava o mesmo percentual: 30% das vagas em concursos e certames, mas se organiza de forma diferente: 20% para pessoas negras, 5% para indígenas e 5% para quilombolas. 

Para a atual ouvidora-geral da Defensoria, Joyce Ramos, primeira mulher quilombola a ocupar o cargo em uma Defensoria Pública no Brasil, a política de cotas e a ampliação de espaços de escuta e representatividade são pilares fundamentais para aproximar a instituição do povo. “A Defensoria sempre foi uma instituição voltada para os grupos vulnerabilizados, mas as cotas raciais alargaram as portas. Agora, além de sermos defensores e defensoras de causas, temos pessoas negras, indígenas e quilombolas dentro da instituição, ajudando a construir as respostas e a olhar o mundo por outras lentes”, diz.

Joyce destaca que a presença de pessoas negras e quilombolas nos quadros da Defensoria amplia a confiança da população e fortalece a atuação antirracista. “Quando uma pessoa quilombola chega à Defensoria e se vê representada, ela sente que aquele espaço também lhe pertence. É sobre pertencimento e poder simbólico”, explica.

A ouvidora também identifica os próximos passos: consolidar o Comitê de Promoção da Igualdade Étnico-Racial e avançar na criação de um Núcleo de Igualdade Racial, nos moldes de outras Defensorias brasileiras. “Precisamos transformar o comitê em um núcleo com atuação finalística, capaz de acompanhar casos, orientar comunidades e articular políticas. O racismo está nas relações e nas instituições, e o enfrentamento precisa ser técnico e político”, defende.

A defensora pública-geral, Sâmia Farias, tem conduzido esse processo de transformação institucional, que exige constância e vigilância. “Abrir a porta para pessoas negras, indígenas ou quilombolas não basta se a cultura da instituição não se transformar junto. A verdadeira inclusão acontece quando há mudança estrutural e compromisso institucional com a equidade”, afirma.

Apesar dos avanços legais e institucionais, a desigualdade racial no Brasil continua alarmante. De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2024), 76,5% das vítimas de homicídio em 2022 eram pessoas negras, e 66,4% dos homicídios femininos também vitimaram mulheres negras.

Além disso, as denúncias de crimes de racismo aumentaram 77,9% entre 2022 e 2023, um reflexo tanto da persistência da discriminação quanto do fortalecimento da consciência e das redes de denúncia.

Esses dados reforçam que a letra da lei, por si só, não basta. A efetivação dos direitos depende de educação antirracista, monitoramento das políticas públicas e atuação firme das instituições de justiça.

Memória e compromisso

A Defensoria Pública do Ceará também celebra, em 2025, 15 anos da Ouvidoria Geral, espaço de escuta ativa e diálogo com os movimentos sociais. A coincidência simbólica entre os 15 anos do Estatuto da Igualdade Racial e da Ouvidoria reafirma um mesmo propósito: ampliar vozes, democratizar o acesso à justiça e transformar realidades.

“Ser a primeira ouvidora quilombola do país é uma responsabilidade enorme, mas também um caminho aberto. Quero que outras mulheres negras e quilombolas saibam que esses espaços são delas. Que a Defensoria continue sendo instrumento de emancipação e dignidade”, conclui Joyce Ramos. Ela lembra que todos os ouvidores que ocuparam o cargo, cinco ao todo, foram pessoas negras: Ana Virgínia Ferreira, Meiry Coelho, Antônia Araújo, Alysson Frota e Joyce Ramos.  

No Ceará, o primeiro estado abolicionista do Brasil, a luta pela igualdade racial segue viva. E a Defensoria Pública reafirma seu papel como aliada dessa causa, lembrando que cada atendimento, cada defesa e cada ação afirmativa representam passos concretos rumo a um Estado mais justo, plural e verdadeiramente antirracista.