Vozes negras: quando a arte abre caminho e acende a ancestralidade
TEXTO: JULIANA BOMFIM
ARTES: VALDIR MARTE
“No mar da contracultura, nadando contra a corrente, a favor da correnteza”. É com este trecho de “O maior dos continentes”, música de Daniel Medina para o álbum LaMar, que a cantora, compositora e empreendedora cultural cearense Lorena Nunes define a sua própria trajetória. Orgulhosa de seu protagonismo e com o cuidado de não romantizar a caminhada, ela sabe que são muitos os desafios enfrentados por mulheres negras que buscam ocupar lugares de destaque na música autoral. “A minha voz vem de longe. É canto, é reza, é existência e é resistência”, reconhece.
Para ela, a música é mais do que ofício. É propósito de vida e forma de reverenciar os que vieram antes. “A minha presença, tudo o que sou no palco e na vida, é um território de afirmação de sonhos. É reconhecer que eu sou o sonho dos meus ancestrais e é uma grande alegria poder ocupar esse lugar”, afirma. Prestes a completar 15 anos de carreira, com nome consolidado na cena musical cearense e apresentações em diversos países, Lorena tem contribuído para ampliar o protagonismo negro no cenário local. “Eu sou um ancestral vivo dos meus contemporâneos. Meu primeiro disco fez história e abriu caminhos para mim e para outros que vieram”, reflete.
Foi também com a arte que Helena Barbosa, secretária municipal da cultura de Fortaleza, ultrapassou as fronteiras invisíveis que pareciam delimitar até onde podia sonhar uma menina preta, moradora de periferia e estudante de escola pública. Ela tinha 14 anos quando participou de um projeto de audiovisual e tomou as rédeas dos próprios sonhos. “A cultura me apontou caminhos, reforçou minha identidade e me fez protagonista de minha vida”, relembra.
Com mais de duas décadas dedicadas à transformação social, à economia criativa, à ocupação de espaços, à resistência e ao resgate da ancestralidade, Helena assumiu, em janeiro de 2025, a Secretaria Municipal da Cultura de Fortaleza (Secultfor). Hoje, é responsável pelas políticas públicas culturais da quarta maior capital do país, com 2,6 milhões de habitantes. Desde o início da gestão, tem priorizado ações estruturantes, como a ampliação de editais e a criação de roteiros permanentes de escuta cultural nos bairros periféricos.
Comprometida em promover uma política cultural mais representativa, a secretária tem visitado diversos territórios para apresentar a pasta, dialogar com as comunidades e discutir formas de fomento às manifestações já existentes. “Não cabe à gestão pública se vestir de arrogância e dizer que vai levar cultura a esses territórios, como os colonizadores que achavam trazer na embarcação todas as soluções de uma vida, com uma perspectiva que não é legítima”, aponta.
A validação dessas expressões culturais pelo poder público reafirma a cultura negra como linguagem de liberdade e resistência. Um movimento que também marcou profundamente a trajetória de Davi Favela, grafiteiro e ativista social. Ainda criança, enquanto cuidava das irmãs mais novas para que a mãe pudesse trabalhar como empregada doméstica, Davi percebeu a distância entre o que via na mídia e a realidade ao seu redor. “Cedo eu enxerguei que o que a gente via na TV e na capa do jornal era diferente. Eu via muita coisa linda, mas, na minha realidade, era esgoto a céu aberto e dificuldade para acessar coisas básicas, como alimentação e saúde”, relata.
Até os 19 anos, usava o pixe (pichação), marca gráfica historicamente criminalizada e que funciona como uma escrita urgente dos territórios vulnerabilizados, para dar forma à sua revolta. “Eu queria mesmo era mostrar as dificuldades enfrentadas pela minha família e por todos que também moravam nos barracos de pau”, lembra. O reencontro com a arte do grafite foi determinante para desenvolver sua consciência política e seu ofício. “Foi através das cores e das ideias politizadas que eu comecei a me entender como preto, como ativista e como educador. Quando comecei a usar a lata de spray para expressar a minha verdade, senti que tinha, enfim, voz e vez”, afirma.
Davi ilustra com sua arte as paredes de diversos prédios da Defensoria, como a sede administrativa, a sede de Caucaia, os novos prédios da Defensoria Verde e do Núcleo de Habitação e Moradia. E vem transformando a vida de outros jovens da periferia. Mais de 15 mil alunos já passaram por suas oficinas, reafirmando identidade e ocupando a cidade como uma grande galeria a céu aberto.
Protagonismo negro no país das novelas
Já se passaram 60 anos desde a estreia de “A Cor da Sua Pele”, na TV Tupi, primeira novela brasileira com uma protagonista negra. Interpretada pela atriz Iolanda Braga, Clotilde era uma empregada doméstica que se apaixonava por Dudu, o filho dos patrões. Ao longo de 63 capítulos, porém, o folhetim, estrelado pelo ator Leonardo Villar, dedicou-se mais ao sofrimento do jovem rico, incapaz de assumir o inédito romance interracial na televisão brasileira.
A superficialidade com que o racismo foi tratado na obra, escrita por Walter George Durst e dirigida por Wanda Kosmo, tornou-se padrão em uma teledramaturgia majoritariamente branca durante décadas. Apenas em 2024, pela primeira vez em sua história, a TV Globo exibiu simultaneamente três novelas inéditas protagonizadas por pessoas negras. Um marco que a atriz Iolanda Braga, falecida em 2021, não chegou a testemunhar.
Mais do que ocupar papéis de destaque, essas personagens negras passaram a contar suas próprias histórias, com objetivos e complexidades, livres das lentes do olhar branco ou de enredos que giravam exclusivamente em torno do racismo. Para a atriz Alice Carvalho, que esteve em Fortaleza a convite da Defensoria Pública para o Seminário Arte, Direitos Humanos e Desconstrução dos Imaginários, essa transformação, ainda que tardia, é consequência direta da luta do movimento negro e da resistência de artistas que reivindicam seus espaços.
“Eu vejo esse momento como de virada, de tomada de poder, porque estar dentro da grande mídia, sendo ouvida, significa ocupar um espaço. Isso é algo que eu aprendi e fui ensinada a desejar para a minha vida. É claro que essas mudanças vêm acontecendo graças ao movimento negro e à luta de artistas que não aceitam dar nem um passo atrás”, afirma.
A defensora Amélia Rocha, diretora da ESDP, reflete sobre esta conexão da arte com o Direito. “Como aprendemos no Seminário que a Escola realizou recentemente, a arte chega onde o Direito ainda não chegou. As instituições têm dificuldade de se universalizar, mas a TV chega, a cultura está lá. Essa representação de pessoas diversas potencializa a compreensão do mundo, desconstrói imaginários excludentes e a consciência de direitos”, revela.
Defensoria antirracista
Como parte de sua política institucional de letramento racial e de fortalecimento de práticas antirracistas, a Defensoria Pública do Estado do Ceará (DPCE) lançou, em abril de 2025, a cartilha “E eu, sou o quê? Um pequeno guia sobre (a sua) raça”. O material tem o objetivo de capacitar defensoras, defensores e servidores para compreender e enfrentar o racismo estrutural, a partir de referências seguras, linguagem acessível e abordagem sensível às experiências cotidianas.
Criação da Secretaria de Comunicação, escrita pelo jornalista Bruno de Castro e ilustrada pela designer Valdir Marte, a cartilha é uma iniciativa do Comitê de Promoção e Defesa da Igualdade Étnico-Racial, criado em novembro de 2024. O Comitê atua como espaço de articulação estratégica, promovendo ações que contribuam para a igualdade racial no sistema de justiça e para a construção de uma sociedade mais justa, plural e antirracista.
A cartilha foi elaborada em linguagem simples. “Esse material nos ajuda a não promover micro agressões nas nossas relações no dia a dia e nos atendimentos. É para que a gente cresça e se fortaleça como uma Defensoria antirracista. Para que nossos colaboradores sejam empoderados e, assim, possam também empoderar as pessoas que acolhemos todo dia”, analisou a defensora Rayssa Cristina Santiago.
De acordo com o presidente do Comitê, o subdefensor geral Leandro Bessa, a Defensoria tem sido voz ativa na promoção da igualdade racial e na defesa de políticas afirmativas. “Nossa instituição é uma das pioneiras em ter uma Ouvidoria Externa, e todas as ouvidoras e o ouvidor que tivemos foram pessoas negras vindas dos movimentos sociais, representativas dessa luta antirracista”, destaca.
Prestes a completar 15 anos de existência, a Ouvidoria Geral externa da Defensoria, hoje ocupada pela quilombola Joyce Ramos, acredita que o material elaborado potencializa a missão da instituição. Já que a Defensoria se coloca como casa do povo, a gente deve saber que povo é esse. Porque falar de um povo não é algo imaginário. No caso do Brasil, é entender que a gente está falando principalmente de pessoas negras”, pontuou.



