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10 anos do Curió: a dor das mães, o caminho da Justiça e as transformações na Defensoria

10 anos do Curió: a dor das mães, o caminho da Justiça e as transformações na Defensoria

Publicado em
TEXTO: BIANCA FELIPPSEN
ARTE: VALDIR MARTE/DIOGO BRAGA

Na noite de 11 para a madrugada de 12 de novembro de 2015, há quase 10 anos, o silêncio da Grande Messejana foi quebrado por uma sequência de tiros que mudou para sempre a vida de dezenas de famílias. Onze pessoas foram assassinadas e outras sete sobreviveram àquela madrugada de medo. A Chacina do Curió se tornou um marco triste na história do Ceará e, ao mesmo tempo, um ponto de virada na forma como a Defensoria Pública do Estado atua na assistência às vítimas e familiares.

Essa virada culminou, em 2017, na criação da Rede Acolhe, um núcleo especializado em garantir apoio jurídico, psicológico e social a vítimas e familiares de crimes violentos. Mas a mudança não veio só na Defensoria: alterou também a forma como o Estado se relaciona com a violência institucional. Mudou ainda a vida de mães e familiares que transformaram luto em luta, dor em movimento: o 11 do Curió.

Dez anos depois, as lembranças ainda pesam. Nas antessalas do Tribunal do Júri, no Fórum Clóvis Beviláqua, nos próximos dias, as vozes das mães ecoarão mais uma vez, carregadas de emoção. Nos dias 25 de agosto e 22 de setembro de 2025 recomeçam mais duas sessões de julgamentos, com um total de 10 policiais no banco dos réus. São momentos de angústia, de reviver a dor e a perda, de buscar justiça. As mães e familiares voltarão a acompanhar de perto os desdobramentos da noite que mudou suas histórias.

Desde 2016, a Defensoria Pública está ao lado das famílias, não apenas na defesa técnica, mas também no acolhimento psicossocial. Desde janeiro daquele ano, a instituição presta assistência às vítimas, buscando justiça em diferentes frentes: na ação coletiva de memória e reparação (ajuizada em 2019), na assistência de acusação nos processos criminais (com três júris em 2023 e dois novos em 2025), no apoio psicossocial integral, no acompanhamento em programas de proteção, além da consultoria em comunicação das vítimas da tragédia. “A atuação é um compromisso com a memória das vítimas, a responsabilização dos culpados e o fortalecimento de políticas que evitem novas violações”, lembra a defensora geral do Estado, Sâmia Farias.

No caso do Curió, a Defensoria atua por meio da Rede Acolhe, criada em decorrência da tragédia, em 2017, pela necessidade de concentrar apoio e assistência às vítimas de violência letal. A defensora Gina Moura, que atua no segundo grau e foi uma das fundadoras do programa, explica que, à época da criação, havia uma fragilidade própria da ação penal, voltada quase exclusivamente ao réu. Ou seja, a vítima de um ato violento acabava reduzida ao papel de mera colaboradora, sem ser vista, assistida ou ouvida. “Pelo lado das vítimas, havia essa lacuna do Estado e das instituições nesta retaguarda”, relembra.

“É importante esse protagonismo, porque elas entram em um esquecimento dentro do sistema de justiça e passam a ser vistas somente como meras colaboradoras, uma pessoa que presta certas informações e isso é o bastante. A palavra da vítima não é qualificada dentro do processo. Então, quando a Defensoria atua em defesa delas, transportamos esta angústia da vítima para dentro do processo criminal. É uma forma de ver o protagonismo colaborativo dessa vítima, não só em termos de produção de provas, mas de construção de tese jurídica”, explica.

A defensora geral do Ceará, Sâmia Farias, reforça que, desde o início dessa atuação, a própria instituição se transformou, porque trouxe para o cotidiano as lutas das vítimas por justiça e por direitos, parte essencial do papel da Defensoria. “A criação da Rede Acolhe simboliza o compromisso da Defensoria de que nenhuma vida perdida será esquecida e de que cada voz silenciada terá quem a represente. Fazemos acolhimento dessas famílias em toda sua dimensão: de saúde mental, de assistência social, de retaguarda no dia a dia, em contato com programas de proteção, contribuímos na construção de políticas públicas e construímos pontes com as instituições. Essa atuação entende que a Defensoria Pública não está apenas diante de mais um processo penal, mas de pessoas que têm sua história mudada por momentos de profunda dor e pela reconstrução de direitos”, pontua.

O papel da assistência de acusação

A Defensoria está na defesa das vítimas no Tribunal do Júri, que terá um quarto julgamento a partir do dia 25 de agosto de 2025, com sete réus, todos policiais militares. Mas como isso funciona?

No ordenamento jurídico brasileiro, o assistente de acusação é uma figura legitimada por lei para intervir como auxiliar do Ministério Público, prevista no artigo 268 do Código de Processo Penal. Assim, atua quando há necessidade de representar os interesses de vítimas ou de seus familiares, reforçando a busca por um julgamento justo e pela responsabilização dos autores. Nessa função, a Defensoria contribui para a produção de provas, pode apresentar teses jurídicas, formular quesitos e acompanhar as etapas do julgamento, sempre com o olhar voltado à dignidade das vítimas e à reparação dos danos sofridos.

“A existência da Defensoria Pública tem como finalidade assegurar o direito de acesso universal à justiça e a efetivação dos direitos de todas as partes de um processo. Isso vale tanto para réus e vítimas quanto para oferecer acompanhamento técnico e humano às vítimas sobreviventes e a seus familiares, priorizando, antes de tudo, o bem-estar e a proteção dessas pessoas”, explica o subdefensor geral, Leandro Bessa. “Essa atuação garante que as vozes atingidas pela violência sejam ouvidas e consideradas no desfecho judicial. Essa atuação fortalece os vínculos com a sociedade e enriquece ainda mais as instituições do sistema de justiça”, acrescenta.

Assim, a atuação no Júri do Curió revela isso: a materialização da instituição pela promoção de direitos, dando voz às mães e familiares da Chacina. “A missão da Defensoria é a proteção dos direitos, seja em apoio à vítima ou ao réu. À Defensoria interessa um julgamento justo e equânime, onde os direitos sejam assegurados. Assim, por exemplo, já atuamos em alguns casos de feminicídio, trazendo a voz da vítima e de seus familiares. Agora, no caso do Curió, ecoam as vozes destes familiares das 11 vidas perdidas, de seus sobreviventes e da sociedade em geral, impactada por esta gravíssima violação de direitos. É muita responsabilidade, mas, sobretudo, uma missão abraçada com afinco pela equipe de defensores e defensoras que estão atuando nessa condução”, complementa Sâmia Farias.

Os casos reverberam até hoje. Nos dias 25 de agosto e 22 de setembro de 2025, serão levados a júri 10 PMs acusados de atuar no massacre conhecido como Chacina do Curió. Outros 14 PMs foram absolvidos e 6 foram condenados.

Elas não enterraram os filhos sozinhas: a luta coletiva das Mães do Curió

Segundo levantamento inédito do Comitê de Prevenção e Combate à Violência da Assembleia Legislativa do Ceará (Alece), publicado em agosto, a partir de uma busca documental em notícias da imprensa, o Ceará registrou, pelo menos, 49 chacinas com 255 vítimas em 26 cidades cearenses, sendo 13 episódios em Fortaleza, no período de uma década. São considerados chacinas episódios com quatro ou mais homicídios ocorridos de forma simultânea ou em sequência, em um mesmo contexto.

Entre os casos, a Chacina do Curió, em 2015, é considerada uma das maiores e mais emblemáticas do Ceará, tanto pela brutalidade que envolve policiais como autores quanto pelo protagonismo das Mães do Curió.

As mães e familiares das 11 pessoas executadas, seis delas adolescentes, além de 7 sobreviventes, conseguiram mobilizar o sistema de justiça, pressionar o poder público e forçar o reconhecimento oficial de que, quando o Estado erra, deve reparar.

São mulheres-símbolo, que entenderam que existir é político. Foram incorporadas a movimentos, políticas, redes de proteção e lutas cotidianas por direitos. É comum vê-las envolvidas em atos públicos e reuniões em instituições, cobrando justiça não só para si, mas também a implementação de políticas de acesso a direitos.

As Mães do Curió foram além das denúncias: ajudaram a construir políticas públicas inovadoras de amparo às vítimas e de prevenção da violência de Estado. Suas mobilizações impulsionaram a criação de iniciativas como: Rede Acolhe (Defensoria Pública do Ceará) – primeiro programa de atendimento jurídico e psicossocial a vítimas da violência institucional do país; NUAVV (Ministério Público) – núcleo de atendimento às vítimas de violência; a linha de atuação exclusiva no Comitê de Prevenção e Combate à Violência (Cada Vida Importa), da Assembleia Legislativa do Ceará, voltada ao enfrentamento dos homicídios de jovens; além do apoio do Cedeca e de organismos internacionais, até chegarem a um acordo extrajudicial de indenização firmado com o Governo do Estado.

Em 2019, uma ação civil pública da Defensoria, assinada por 17 defensores públicos, garantiu cuidados e tratamentos especializados em saúde mental ofertados obrigatoriamente pelo Estado do Ceará, aos familiares e vítimas da tragédia. À época, a ACP era uma tentativa de dar uma resposta mais rápida a quem já aguardava quatro anos por alguma resposta reparatória do poder público. 

Os pedidos apresentados na ACP contemplavam a construção de um memorial em favor das vítimas fatais e sobreviventes, preferencialmente em Messejana, a realização de um ato público de reconhecimento da responsabilidade do Estado do Ceará em virtude da atuação de agentes de segurança pública (independentemente da apuração individual da responsabilidade criminal), e a oferta imediata e efetiva de tratamento psicológico às famílias e sobreviventes. Os pedidos de amparo psicossocial foram dados em caráter liminar e indenização, em vias extrajudiciais. 

Em 2023, o governador enviou à Alece uma lei que previu as indenizações a serem pagas pelo Governo do Ceará às famílias de vítimas falecidas ou às vítimas com redução da capacidade laboral e abalo psicológico. “A chacina foi uma tragédia para toda a sociedade. Minha absoluta solidariedade aos familiares e amigos das vítimas”, disse Elmano de Freitas, à época, em encontro com as Mães.

Assim, a história delas não é apenas sobre luto. É sobre como a persistência de mães periféricas transforma um caso de violência policial em símbolo nacional de resistência, justiça e reparação. “São direitos da coletividade violados que vão além da Chacina do Curió. O importante é o reconhecimento de que o Estado tem responsabilidade nesse episódio e assumiu o interesse de, em diálogo, prover essa reparação sinalizando que  tragédias dessa natureza não aconteçam novamente na sociedade cearense”, completa Sâmia Farias.

Apesar da existência de corregedorias, a violência institucional no Brasil permanece alarmante e desproporcionalmente dirigida à juventude negra e periférica. As Mães do Curió se somam a um movimento internacional de mulheres que lutam por memória, justiça e reparação da violência estatal, em paralelo a iniciativas como as Mães da Praça de Maio (Argentina), as Mothers Against Police Brutality (EUA) e o Colectivo de Mujeres Víctimas de Violencia Estatal (Colômbia).

Entre elas, Edna Carla Souza Cavalcante, mãe de Álef, transformou o luto em militância. “A nossa luta começou a tomar sentido e a ganhar espaço. Isso tem dado uma força muito grande. Quando você luta com mais pessoas, o seu grito tem mais potência. Ninguém apagará o meu filho da história. Ele existe e ele vai sempre existir. Eu vejo que meu filho morreu para haver uma transformação, pelo menos, na minha vida. Hoje sou militante dos direitos humanos, defensora dos direitos humanos”, afirma.

Além de Edna, outras mães se somam a familiares. Ana Costa é vítima de duas tragédias. A primeira foi a morte do filho Gabriel, de 16 anos, em Itapajé, também vítima de ação policial. Na Chacina do Curió, perdeu o esposo. “Foram dores muito grandes, que me deixaram perdida e sem apoio. Eu achava que não ia suportar. Mas precisei ter força pra dar força à minha filha e criar ela sozinha. Sigo tentando sobreviver, mesmo com essas dores”. Enquanto se encoraja e se fortalece na luta por memória e justiça com outras mulheres, Ana virou defensora popular da primeira turma do projeto coordenado pela Defensoria, em parceria com o Ministério da Justiça e a Unilab.

A história do Curió oferece uma narrativa poderosa sobre justiça restaurativa, memória coletiva e protagonismo feminino na luta por direitos humanos. Essas mulheres têm em comum o fato de reivindicar do Estado algo básico: o direito de lembrar, o direito de enterrar com dignidade, o direito de exigir justiça e de não serem silenciadas.

11 do Curió

Criada em 2023, a campanha 11 do Curió reúne esforços da Defensoria Pública do Estado, do Ministério Público do Ceará, do Comitê de Prevenção e Combate à Violência da Assembleia Legislativa e do Cedeca, além de diversos movimentos sociais nacionais e internacionais, para dar visibilidade à luta das Mães do Curió.

As estratégias de comunicação surgiram após encontro entre assessores de comunicação dessas instituições e seguiram acontecendo para apoiar e fazer ecoar as vozes das mães, familiares e sobreviventes, ampliando um clamor que, desde aquela noite de violência, exige responsabilização. A página “11 do Curió” (acesse AQUI) e o perfil no Instagram (@11docurio) produzem conteúdos que reverberam mensagens de memória e justiça. Além disso, a campanha conta com identidade visual própria em camisas, faixas, adesivos e banners.

Na gênese do nome, uma coincidência simbólica: o crime começou no dia 11/11, por volta das 23 horas, seguiu pela madrugada e deixou 11 mortos. O número se repete, ecoando a dimensão da tragédia. A isso, somou-se a referência ao pássaro curió, que dá nome ao bairro. “É um canto bonito este que se une em solidariedade e em rede por justiça. Embora cheia de dores e de ausências, essas mães conseguiram selar na história – graças à sua mobilização – o nome dos 11 do Curió, em favor da justiça. Assim como elas se reuniram, as instituições também se unem para o somatório de forças”, registraram os assessores responsáveis pela concepção da campanha.