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“A abolição aconteceu sem reforma social e os negros foram jogados à própria sorte”

“A abolição aconteceu sem reforma social e os negros foram jogados à própria sorte”

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O pioneirismo cearense em abolir a escravidão antes do resto do Brasil foi pauta de mais uma edição do #NaPausa, programa de transmissões ao vivo da Defensoria Pública (DPCE) no Instagram. Na última quarta-feira (24/5), véspera da Data Magna do Ceará, duas mulheres militantes do Movimento Negro protagonizaram uma discussão sobre o quão necessárias são a resistência e a mobilização para a reparação de injustiças sociais.

Ouvidora geral da DPCE, Antônia Araújo destacou como a história da negritude brasileira é silenciada nos registros oficiais. “Muita gente contou a nossa história. Mas o que está nos livros não nos representa. E não nos representa porque não tem o nosso olhar, o olhar de quem herdou a tragédia da escravização. Querer mudar isso está longe de ser um revisionismo histórico. Estamos falando da perspectiva de um povo que foi apagada. E o nosso passado e o nosso presente não se desvinculam”, afirmou.

Assessora especial dos Movimentos Sociais no Governo do Estado, Zelma Madeira reforçou a importância de a historiografia cearense ser mais honesta com a trajetória dos escravizados. Quase sempre, as populações dominadas são retratadas como passivas ou em quantidade desimportante, especialmente quando se coloca que aqui a libertação aconteceu quatro anos antes, em 1884, do restante do Brasil (em 1888, com a promulgação da Lei Áurea).

“Quando a gente vai falar dessa data (25 de março), a historiografia coloca em relevo a ação dos abolicionistas, principalmente os da elite branca cearense. Tentam falar da abolição sem falar da escravidão. Querem falar de escravidão sem o negro. E não dá. É preciso entender o que foram 400 anos de trabalho compulsório”, criticou Zelma Madeira.

Pesquisadora do tema, ela enalteceu que o fim do sistema escravagista deu-se não por uma bondade da elite branca ou por uma consciência coletiva de que a submissão de uma raça a outra seria moralmente um equívoco. A escravidão foi encerrada devido aos diversos movimentos de resistência direta de negros e negras em todo o território nacional e porque, economicamente, não se sustentava.

Em 1850, a comercialização de escravizados foi proibida – o que inviabilizou muitas transações e a manutenção do status social daquela época. Entre esse marco e a abolição no Ceará, transcorreram, portanto, 34 anos. “A historiografia, quando fala do negro, só fala do Dragão do Mar como herói. O que nós queremos é contar a nossa história de luta pela nossa perspectiva. É injusto demais não podermos contar quem fomos e que esse projeto de nação teve a participação de negros e negras no âmbito do trabalho, na dimensão da cultura e na participação política. Temos que dizer que lutamos politicamente para termos liberdade. Nós fizemos resistência de todo jeito”, acrescenta Zelma Madeira.

Para ela, a celebração de marcos como a Data Magna do Ceará é fundamental para colocar em perspectiva o quanto a escravidão foi um período criminoso para a humanidade. E que tentar reduzir a nocividade dessa época a “mi mi mi” é destituir de conteúdo uma ferida ainda aberta da formação do povo brasileiro.

“Para que possamos entender o presente, a realidade que passamos hoje, é preciso entender o passado. Quando falamos de abolição, falamos do que nos oprimiu e de que forma nós resistimos. Porque é mentira dizer que assistimos a tudo de forma passiva. Você não pula da escravidão pra abolição. A abolição foi calcionada por lutas em busca da liberdade. A quilombagem sempre aconteceu. É um movimento de rebeldia permanente. Temos que contar que teve rebelião e luta de emancipação. Mas que essa abolição aconteceu sem reforma. Se deu de forma inconclusa e os negros foram jogados à própria sorte ou azar numa sociedade que se desenvolvia. É aí que surge o racismo estrutural, que implica nas desigualdades sociorraciais que temos até hoje”, reflete Zelma.

A militante criticou a chamada “democracia racial”, que prega a total igualdade de oportunidades entre as raças, uma tese racista do início do século XX utilizada até hoje para reforçar o sistema de privilégios da etnia branca em detrimento das demais. “Tentam colar a ideia de que a nossa sociedade é fraterna e todos somos iguais, quando os negros não contaram com políticas de reparação após a escravidão. A gente saiu da abolição sem ser classe trabalhadora. Saiu como classe perigosa, com a criminalização das nossas condutas. Se você pedisse esmola, era preso. Se jogasse capoeira, era preso. Se ficasse na rua sem fazer nada, era preso. Mas o discurso é o de que se você, sendo livre e a sociedade sendo fraterna, não prosperou, o problema é teu e não do Estado.”

Por isso, políticas afirmativas implementadas atualmente foram destacadas por Zelma. Medidas como a instituição de cotas raciais em concursos públicos, tal qual fez a Defensoria, em novembro do ano passado, e o Governo do Ceará, nessa quinta-feira (25/3). Em ambos os casos, 20% das oportunidades serão destinadas a pessoas negras (pretas ou pardas). Cotas são uma reivindicação do Movimento Negro desde a década de 1980 que começaram a ser implementadas em 2012.

CAMPANHA NACIONAL
Além de realizar de forma programática transmissões sobre a historiografia negra, de debater a importância do combate ao racismo e de implementar ações afirmativas próprias, a Defensoria Pública do Ceará prepara para maio uma campanha antirracista. Além disso, a instituição tem promovido a temática em articulações e produtos internos, como na formação de novos/as defensores/as e a elaboração de materiais visuais (agenda, peças institucionais, capacitações etc).

“A Defensoria é um órgão de defesa dos direitos humanos e o combate ao racismo é uma das pautas públicas mais importantes que temos não só hoje como historicamente. O antirracismo é fundamental porque questiona uma série de desigualdades: falamos de acesso a emprego, geração de renda, violência policial, funcionamento do sistema penitenciário, segurança alimentar e diversas outras urgências que agora, na pandemia, se tornaram ainda mais impositivas. Campanhas educativas não devem ficar restritas a efemérides. Elas precisam acontecer o ano todo”, afirma a supervisora do Núcleo de Direitos Humanos e Ações Coletivas (NDHAC) da DPCE, defensora Mariana Lobo.