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“A luta não cessa e quem baixa a guarda não vence”

“A luta não cessa e quem baixa a guarda não vence”

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Primeiro Tina Azevedo, depois Helena, até que de fato: Lena Oxa – um nome escolhido intencionalmente por ter sete letras e, assim, carregar uma crença na numerologia e a representação do perfeccionismo. Um percurso que rompeu a determinação da certidão de nascimento e tem como protagonista alguém reconhecida não como homem, mas travesti. Uma identidade real.

Amante dos palcos desde a adolescência, a jornalista e apresentadora Lena Oxa experimentou as dificuldades de assumir a própria identidade na busca por oportunidades de trabalho e na ausência de apoio social. Hoje com 54 anos, ela atravessou os túneis opressores do fim da Ditadura e a rigidez, à época ainda maior, do preconceito ocasionado pela escolha de gênero. Dificuldades essas que nunca imobilizaram Lena. Ao contrário. Só fortaleceram a defesa e o engajamento na luta LGBTQIAP+.

“Eu queria vencer! Esse era o sentimento que me movia. Queria aprender. Ser a melhor no que me propunha a realizar, pois almejava ter respeito e conquistei. Estive por 20 anos dentro de uma emissora de televisão, toda montada, levando conteúdo para dentro das casas, colaborando fortemente para a quebra do preconceito. Participei de todos os programas porque tinha competência. Brincaram, duvidaram, mas eu permaneci sem baixar a cabeça. Tive paciência, busquei ter sabedoria para não me deixar levar e, assim, consegui conquistar meu espaço, o respeito à minha palavra, ao meu trabalho e sempre como uma travesti. Fui crescendo, aprendendo, solidificando meu trabalho”, destaca.

Ser travesti na década de 1980 exigiu de Lena determinação para enfrentar de frente a repressão policial. Vinham prisões sob acusação de vadiagem. Ou mesmo apanhar de PM (foram dois episódios) por se vestir como desejava. A primeira oportunidade profissional, ela lembra, foi na boate Casa Blanca, ponto de encontro que marcou a noite de Fortaleza e funcionava no Centro.

“Eu me descobri como artista ainda no colégio, quando admirava um amigo bailarino que fazia shows no recreio. Logo me inspirei, comecei a fazer minhas roupas, montar o meu show e também me apresentar. Conquistei meu fã-clube e fui em busca de oportunidades nas boates. Ali comecei a amadurecer mesmo como artista e a desenvolver e aperfeiçoar meus dons. Permanecer não foi fácil. Mas eu resisti. Resisto e tenho orgulho em compartilhar tudo o que passei e sobrevivi, pois muitas não estão mais aqui. Me sinto na obrigação de honrar essa caminhada árdua.”

 

 

A história de Lena traduz a de tantas travestis e pessoas trans: quando o corpo não traduz a identidade e o gênero que constam na certidão de nascimento, não representa alguém que de fato exista. Essa é a realidade de quem vivencia a incongruência de gênero – antes, considerada doença associada a transtornos mentais e agora não mais estereotipada como tal. Agora (só agora, em 2022), a Organização Mundial de Saúde (OMS) passa a reconhecer a transexualidade como uma condição e não como uma doença.

Os sonhos movem Lena. Tanto que ela resolveu ir para Salvador em busca de novas experiências. Articulada, conseguiu entrar para o grupo empresarial Casablanca como estilista, sendo responsável por três lojas. No trabalho, assumia a identidade travesti e ia conquistando o respeito e reconhecimento das pessoas por onde passava.

Ainda na capital baiana, foi presidente da Associação das Travestis, na qual trabalhou com o antropólogo Luiz Mott, a quem considera um grande professor e incentivador. “Salvador foi uma grande escola. Lá foi onde aprendi tudo o que precisava saber sobre sobrevivência, determinação e estilo de vida”, remonta.

Alçando voos maiores, foi para a Europa. Teve a oportunidade de trabalhar como cabeleireira, peruqueira, maquiadora e desenhista de roupas para shows. “Sair do seu lugar é difícil, ainda mais sendo para outro país e como travesti. Mas me mantive firme, sempre trabalhando e buscando criar minhas oportunidades. Nunca esperei ninguém me oferecer nada, porque de fato nunca ninguém fez isso. Tudo que conquistei foi o meu suor mesmo. Minha disposição de correr atrás”, frisa.

 

 

“Tempos de conquistas”. A definição dada por ela demonstra uma mudança na forma de encarar o preconceito. Quando voltou ao Brasil, Lena começou a trabalhar numa boate. Permaneceu por oito anos e vivenciou um grande movimento de resistência. “Antes, tínhamos que nos esconder debaixo dos carros, dentro de bueiros, fugir para não sermos presas. Mas a partir desse momento eu senti nas pessoas um ânimo diferente. A gente não corria mais, a Polícia não simplesmente invadia e saia prendendo. As travestis estavam se sentindo seguras em seus direitos, se reconhecendo enquanto cidadãs e não simplesmente fugindo. A gente começava a enfrentar e a defender nossa identidade. A gente continuava ali, sem fugir. Decidimos que iríamos ser respeitadas como gente e não tratadas como criminosas ou como se quem somos fosse algo que contrariasse a lei.”

Ela acrescenta: “Sem dúvida, trabalhar na televisão foi um passo que marcou minha trajetória e permitiu também mudanças na vida de muita gente. Sempre recebi relatos, mensagens falando sobre como foi um divisor de águas ter uma travesti dentro do Jornalismo, produzindo bons conteúdos, levando informação e estimulando debates e reflexões. Fiz curso de radialista, de cinema, me capacitei… Quando estou montada, a resistência é maior. Sinto o preconceito bater no meu peito, mas permaneço como uma soldada de guerra.”

Invisível a olho nu, mas doloroso como um golpe certeiro, o preconceito é um grande adversário. No entanto, Lena fez das pelejas trampolim, vencendo com a força da própria voz na caminhada que trilhou. “Foi um processo, um nome fortalecido com muito empenho e integridade, com compromisso, com esforço. Você leva consigo todo o preconceito, a raiva, a falta de entendimento das pessoas, mas você não se abate, nem para. Afinal, a luta não cessa e quem baixa a guarda não vence.”

Sobre 29 de janeiro ser o Dia Nacional da Visibilidade Trans, Lena escolhe celebrar e exercer a representatividade diariamente. “Não gosto da ideia de reduzir a luta a uma data. Claro que sei que representa conquistas, mas todo dia para mim é dia 29. Sempre foi e sempre será. Todo o dia que eu passo, resisto, vivo e enfrento. Alcanço respeito, reconhecimento. Ninguém pode discriminar ninguém pelo trabalho, pela orientação sexual… Então, se arrume todos os dias! Levante a cabeça todos os dias e vá em frente.”

Ao longo dos anos, a transexualidade tem sido ressignificada e ecoada como resistência e luta por nomes como Lena Oxa, que marcam a história pela liberdade da diversidade. “Tudo o que fiz sempre foi pensando no coletivo. Não paro de lutar para que nós, travestis, sejamos sempre respeitadas, reconhecidas e valorizadas em nossas atividades”, conclui.

 

 

Nesta quarta-feira (26/1), a Defensoria Pública Geral do Estado (DPCE) publica a terceira reportagem do especial “Visibilidade Trans” e conta a história da travesti, transativista, transfeminista, jornalista e mestranda em Antropologia Dediane Souza.