A maternidade possível e coletiva de uma mãe solo: “hoje não me falta mais nada”
Essa é mais uma história de adoção dentre as centenas que a Defensoria Pública do Ceará (DPCE) acompanha e cujo final feliz pode inspirar mais pessoas a enxergarem na adoção tardia, aquela de crianças acima de três anos de idade e de adolescentes, uma possibilidade de exercício do amor. A maternidade é a mesma. E deixou de ser impossível para mulheres que desejam viver isso sem se reduzirem a parceiros(as).
Texto: Bruno de Castro
Foto: ZeRosa Filho
Ilustração: Valdir Marte
“Cada filho somos nós no melhor que temos para dar.
No melhor que temos para ser.”
Valter Hugo Mãe, na página 181
do livro “O filho de mil homens”
A mulher tanto quis, tanto fez e tanto perseverou que pariu. E o fez aos 46 anos, tardiamente para as recomendações médicas. Mas não havia problema, pois já crescida também era a criança dada à luz. Tinha lá já meia década de vida quando chegou, nascida não do ventre mas dos afetos, do coração de Leondira Sousa de Oliveira, que teve a certeza de ser ela própria a mãe de Alycia Hellen tão logo soube da história da garota.
“Ela chegou ao [serviço de] acolhimento ainda bebê. Foi deixada pela mãe na maternidade com dez dias de nascida e estava no abrigo porque tinha uma condição especial de saúde [a menina foi diagnosticada com Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (Tdah)]. Eu disse que ia lutar por ela. E tudo aconteceu mais rápido do que imaginei”, analisa a agente administrativa.
Entre o cadastro no Sistema Nacional de Adoção (SNA) e a notícia de que havia uma criança disponível, 13 meses se passaram. Dali, a Alycia morar com Leondira, então, foram só mais dois meses. Cerca de 30 dias depois, em novembro do ano passado, veio a conquista da guarda provisória. E, em março deste ano, a guarda definitiva foi concedida pela Justiça.
Segundo o Painel de Monitoramento do SNA, mantido pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), 18,5% das 4.767 crianças e adolescentes disponíveis para adoção no Brasil atualmente têm alguma deficiência intelectual ou apresentam deficiência física e intelectual. Todos(as) integram, portanto, a população de pessoas com deficiência, o que as/os afasta do perfil procurado pelos pretendentes – em busca de recém-nascidos brancos, do sexo feminino e sem condições específicas ou doenças.
“Quando dei entrada no processo de adoção, não sabia que ia sentir algo tão forte. Mas é porque veio na hora certa. Veio pra completar o que faltava na minha vida. Porque eu sou realizada profissionalmente, trabalho com o que gosto e vivo bem financeiramente. Faltava ser mãe, que era algo que eu sempre desejei e não consegui nos relacionamentos que tive. Acho que foi coisa de Deus mesmo, sabe? Eu vejo hoje que não me falta mais nada. Me tornei a mãe que eu queria ser”, reflete Leondira.
Mas só é assim porque ela cedo, antes mesmo de entrar no SNA, percebeu duas coisas fundamentais: 1) para ser mãe, biológica ou do coração, não precisaria de marido, pois caiu por terra o entendimento de que “mulher solteira” não podia adotar; 2) como mãe solo e provedora da própria casa, a família nuclear (pais e irmãs) seria determinante para o desenvolvimento de Alycia.
A mãe recorda as diversas visitas que teve de assistentes sociais e psicólogos antes de adotar a garota. Um escrutínio meticuloso de especialistas cujo objetivo é garantir o bem-estar da criança. Assegurar a ela um lar. “Não existe rede de apoio melhor do que a família. Porque criar filho não é só ter dinheiro. Envolve muita coisa. Mas meus pais me apoiaram incondicionalmente. Então, nessa maternidade, não é só eu. É toda a minha família, que participa. É uma maternidade familiar, coletiva mesmo”, analisa.
Leondira é consciente das críticas que recebe de uma sociedade ainda imatura para lidar com a adoção por mães solo. A assistente administrativa, porém, prefere não dar ouvidos. Gasta o tempo fazendo planos pra filha – que, segundo ela, “chegou pra revolucionar tudo e mudou a vida de todo mundo da família”, mas não deixa de ser um desafio por todas as demandas que suscita. Devido ao Tdah, Alycia é acompanhada por profissionais neuropsicólogos e de outras especialidades.
A pequena já mudou de escola, está no Infantil V e hoje já escreve o próprio nome, além de fazer aulas de natação, balé e inglês. Arrisca, inclusive, falar algumas palavras no outro idioma. “A gente tem que ter muita paciência. Mas hoje ela vive muito melhor. Eu tenho plena convicção disso. No começo, eu tive um pouco de receio. Porque era tudo novo. Hoje, não mais. Conheço cada jeitinho dela. Ela fala assim: “mamãe, eu nasci da tua barriga?”. Eu fico aperreada, mas falo: ‘você não nasceu da barriga, mas nasceu do coração’”, remonta Leondira.
Vivido este ano o primeiro Dia das Mães, ela aconselha quem deseja adotar e ainda não deu o primeiro passo e quem já está no SNA mas acha o processo demorado. “Os cursos e a preparação toda são uma burocracia necessária, porque a Justiça vai te entregar uma criança. É alguém pra tua responsabilidade pro resto da vida. Então, tu tem que se preparar mesmo pra receber. Não vou dizer que eu estava 100% preparada, porque isso a gente nunca vai estar. Cada dia é uma superação e eu já aprendi muita coisa. Tanto que vou, em breve, entrar na fila da adoção novamente. Quero outro filho.”
Com Alycia, os planos são um só: ter um futuro. “Antes, eu não pensava no amanhã. Hoje, eu me preocupo com o dia de amanhã. Penso: “será que vou estar aqui pra ela? Será que vou ter o financeiro pra suprir as necessidades dela?”. Então, tudo o que eu puder fazer por ela, eu vou fazer. Meu sonho é ver a Alycia crescer. É ela ser feliz e se formar no que quiser. Mas sempre assim: no caminho certo. Quero que ela tenha o que eu não tive. Pra ela, só quero o melhor. Só o melhor. Mas é um dia por vez”, constata.