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Ailton Krenak: “Racismo ambiental é uma torção na nossa vida”: a urgência de justiça aos corpos invisibilizados

Ailton Krenak: “Racismo ambiental é uma torção na nossa vida”: a urgência de justiça aos corpos invisibilizados

Publicado em
Entrevista: Juliana Bonfim, Giullian Rodrigues e Tarsila Saunders
Imagens: ZéRosa Filho
Arte: Diogo Braga

Ailton Krenak, pensador, ambientalista, filósofo, poeta e escritor brasileiro, é uma das vozes mais influentes na luta por direitos, em sua sabedoria ancestral e na relação de respeito e preservação do meio ambiente. Sua trajetória é marcada por momentos emblemáticos que reforçam seu compromisso com a resistência e a justiça social.

Um desses momentos foi seu discurso na Assembleia Constituinte, em 4 de setembro de 1987, considerado uma das cenas mais marcantes na defesa dos direitos dos povos originários. Vestindo um terno branco, Krenak subiu à tribuna da Câmara dos Deputados para protestar contra o que julgava ser um retrocesso na luta pelos direitos indígenas. Durante sua fala, ele pintou o rosto com tinta preta feita de jenipapo, simbolizando a resistência e a identidade. A repercussão do gesto mobilizou os parlamentares para a aprovação dos artigos 231 e 232 da Constituição Federal, que reconhecem os indígenas como cidadãos e com proteção e defesa de sua vida, território e direitos.

Krenak foi voz presente na ECO92 – Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e Desenvolvimento, realizada de 3 a 14 de junho de 1992, no Rio de Janeiro. O evento reuniu delegações de 175 países e é considerado um marco na conscientização ambiental. Foi durante o encontro, que a questão das mudanças climáticas ganhou maior visibilidade internacional.

Primeiro indígena a se tornar ‘imortal’ da Academia Brasileira de Letras, Ailton Krenak é professor honoris causa pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e pela Universidade de Brasília (UnB) e participou da criação do Núcleo de Cultura Indígena, da União dos Povos Indígena e da Aliança dos Povos da Floresta, movimento que visava a criação de reservas naturais na Amazônia.

É um dos primeiros ativistas brasileiros a estabelecer uma relação clara entre os impactos ambientais e as populações mais vulneráveis, como comunidades negras, indígenas e outros grupos marginalizados, o chamado racismo ambiental. Como defende, essas populações são as mais afetadas por problemas como poluição, desmatamento, falta de saneamento básico e urbanização precária.

Nesta entrevista exclusiva à equipe da Secretaria de Comunicação da Defensoria, na última segunda-feira (19), Ailton Krenak – que estava em Fortaleza à convite do Museu da Imagem e do Som do Ceará (MIS) para lançamento da  exposição “Hiromi Nagakura até a Amazônia com Ailton Krenak”, no qual é curador – falou sobre o racismo ambiental e a necessidade de políticas de letramento voltadas para essa temática. Ele também reflete sobre o papel da Defensoria Pública na promoção de uma sociedade mais justa e sustentável.

 

O senhor tem sido uma das vozes mais lúcidas ao denunciar a separação entre humanidade e natureza diante do colapso que vivemos. Como entende a relação entre a emergência climática e o que hoje chamamos de racismo ambiental?

Ailton Krenak – Acredito que, ao longo do Século 20, podemos fazer uma observação importante para distinguir duas questões: os eventos climáticos e a incidência na vida de milhares de pessoas, que é o que chamamos de racismo ambiental.

As mudanças climáticas são um fenômeno relativamente recente, que só ganhou destaque público a partir da Conferência do Rio de Janeiro, a ECO92. Já o racismo é uma experiência que estamos vivendo há muito tempo, desde a Revolução Industrial. Essa experiência começou colocando crianças para trabalhar até morrer, como na Inglaterra, onde crianças trabalhavam em minas de carvão até o fim de suas vidas. Essas crianças não eram filhas da rainha, eram filhos dos pobres, e isso revela um racismo estrutural. Porque, na condição de meninos, seus corpos podiam ser jogados em um buraco para tirar carvão.

O racismo ambiental, de certa forma, escancara as imensas desigualdades sociais. Esse racismo estrutural está ligado à pobreza e cria uma situação na qual o dano ambiental afeta primeiro o corpo dessas pessoas, esses corpos. Depois, esse impacto pode se espalhar para outros lugares, mas o primeiro lugar de incidência do racismo ambiental é o corpo das crianças, das pessoas. O segundo lugar é o território onde essas pessoas vivem. Quando visitamos um bairro com esgoto a céu aberto, onde está o racismo? Ele está incidindo no corpo das pessoas que vivem naquelas condições de pobreza e exclusão.

Assim, quando falamos em saneamento ambiental no Brasil, algumas pessoas podem achar que isso é um exagero. Que é impossível levar saneamento para todos, por causa do tamanho do país e da diversidade da população. Mas o racismo, esse sim, pode estar presente em todos os lugares.

Os córregos, as bicas, o esgoto a céu aberto são um racismo explícito, continuado pelo poder público. Um município deveria priorizar a proteção do corpo das pessoas, evitando que elas sofram com esse racismo ambiental.  Estamos falando de meio ambiente, mas é importante lembrar que nem todo mundo respira o mesmo ar ou bebe a mesma água. Tem gente que respira ar muito limpo, enquanto outras pessoas bebem água de rios contaminados ou de esgoto.

O racismo ambiental existe, sim. Para você ver as mudanças de tom, não é impossível fazer um letramento sobre racismo ambiental. É possível, e eu acho que as instituições públicas deveriam se engajar nessa iniciativa de letramento. Isso poderia ajudar, pelo menos, as comunidades mais desprotegidas a terem um olhar um pouquinho mais atento a esse sofrimento. Imagine só: levantar de madrugada, atravessar um esgoto a céu aberto para ir trabalhar. Como é que você chega no trabalho? Você vai viajar três, quatro horas?

Outra questão importante nesse campo do racismo ambiental, muito anterior à crise climática, é que precisamos pensar em formas mais agressivas de enfrentar essa realidade. Geralmente, as pessoas que trabalham na cidade moram na periferia. Saem às quatro ou cinco horas da manhã, para chegar às sete horas no trabalho. Por que essas pessoas não podem trabalhar onde moram? Por que o trabalho não vai até elas? Por que continuam sendo tratadas como se estivessem em uma condição quase de escravidão? Essa situação, somada à privação de vida que já enfrentam, parece uma forma de escravidão moderna. Você tem que levantar meio tonto e ir trabalhar, muitas vezes, em condições precárias.

Talvez aqui em Fortaleza, nesse paraíso tropicalista, vocês pensem: “Nossa, isso acontece em regiões muito urbanizadas”. Mas não é só assim. Isso também acontece nos municípios menores. Os municípios também praticam exclusão ambiental. Há uma concentração de riqueza em lugares bons para viver com infraestrutura sempre mantida, enquanto a periferia precisa se virar nas enchentes, nas inundações e na falta de saneamento adequado.

 

Muitas vezes, a linguagem dos direitos parece insuficiente para nomear as violências vividas pelos povos indígenas, ribeirinhos e periféricos. Como podemos, a partir de uma justiça pública e popular – como a que defendem a Defensoria e os movimentos sociais – abrir espaço para essa reparação?

Ailton Krenak – Hoje discutimos como criar mecanismos de reparação para esse dano, especialmente considerando que ele é histórico. Quando falamos da questão climática, podemos relacioná-la ao racismo ambiental, pois os eventos extremos do clima tendem a agravar o prejuízo para as pessoas que já eram excluídas do ponto de vista ambiental. Por exemplo, os pescadores e quem vive na orla, na margem dos rios ou do oceano, sofrem bastante. Quando o mar sobe alguns centímetros, os empreendimentos à beira do mar podem ser destruídos pelo avanço das águas.

Eventos climáticos são aqueles que não podemos prever com exatidão, como chuvas intensas em um mesmo lugar ou o mar avançando sobre a terra. É algo tão cotidiano que me surpreende porque ainda ocupamos áreas de encostas e litoral que deveriam ser preservadas como interesse comum. Essas áreas não deveriam ser apropriadas para construções. Os empreendimentos imobiliários continuam indo para cima do mar, e só falta mesmo construir estruturas flutuantes na praia!

Por isso, é importante termos uma regulação clara e respeitá-la, impedindo construções muito próximas da orla, já que ela precisa se mover com o tempo. A mudança climática, na minha visão, é como uma torção na nossa vida, uma distorção na nossa experiência de convivência com o planeta. Ou aprendemos a viver com ela, ou vamos pagar um preço alto por negligenciar nossas próprias vidas. Algumas pessoas valorizam muito o patrimônio, né? Se o mar invade e destroi o restaurante, o hotel ou a pensão que alguém construiu, fica muito chateado. Mas é importante entender que, eventualmente, o mar pode colocar em risco a própria vida dessas pessoas, não só os bens materiais.

Olha, eu fiquei muito feliz quando, nos anos 90, ampliamos o horizonte de ação do Ministério Público Federal e das Defensorias. Vi o empoderamento dessas instituições para aplicar a justiça e estender o serviço à população mais vulnerável. Então, acredito que estejam bem preparados e autorizados a se envolver mais profundamente com a vida dessas comunidades.

Agora, é mais um exercício de envolvimento das pessoas que fazem parte da Defensoria Pública, de estar junto das pessoas. Quando vemos casos bem encaminhados e resolvidos, é porque o defensor público também saiu do gabinete, se colocou no cotidiano das pessoas, foi ver como elas vivem. Visitar essas comunidades pode ser uma forma muito mais próxima de entender a realidade deles, ajudando a mediar conflitos com a cidade, com a sociedade. Porque, no final das contas, a falta de atendimento muitas vezes resulta em conflito, que pode chegar até à lista de transgressões.

E aí, muitas vezes, ouvimos: “Ah, porque o menino ou a menina de tal lugar foi preso, levado à delegacia, denunciado na delegacia.” Isso acontece como consequência do racismo ambiental, mas também porque as instituições ainda não descobriram como realmente servir a essas comunidades.

Quais os caminhos o senhor acredita serem fundamentais para fortalecer a presença da Defensoria nesses territórios?

Ailton Krenak – A maioria das pessoas, ao alcançar esse privilégio de representar a justiça, negligencia uma visita ao campo, uma caminhada na beira do rio, do mangue, na restinga, nos beiradões, onde as pessoas precisam pegar seu caranguejo. É lá que você consegue ver como elas vivem de verdade. 

A literatura me ajuda muito a perceber como criamos camadas de privilégio invisíveis. Quem está nesse privilégio, muitas vezes, não vê os outros, nem percebe que está usufruindo dessa condição. A literatura é uma ferramenta poderosa para isso. Por exemplo, ao ler Torto Arado, do meu amigo Itamar Vieira Júnior, você vai entender um grupo de mulheres que vivem um verdadeiro inferno astral, carregando uma herança colonial e escravocrata na vida brasileira. E aí você se pergunta: “Gente, por que ninguém faz nada para proteger essas vidas?” A literatura também ajuda a despertar essa consciência.

Então, além de os defensores descobrirem que podem visitar essas comunidades, eles também podem ler mais, não ficar só nas peças jurídicas. A literatura ajuda a humanizar. 

Acredito que tudo isso se conecta: a persistência do racismo na nossa cultura e as mudanças do clima.São duas situações de prejuízo que precisamos entender e agir para melhorar. A vida no mundo já está muito pesada para muitos povos. Aqueles que carregam marcas na cultura, na pele, estão sendo quase que exterminados pelo racismo. E estamos falando de um racismo estrutural, que mantém uma sociedade que parece incapaz de mudar.