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Brasil mata uma pessoa trans/travesti a cada três dias e lidera ranking mundial de assassinatos pelo 17º ano consecutivo

Brasil mata uma pessoa trans/travesti a cada três dias e lidera ranking mundial de assassinatos pelo 17º ano consecutivo

Publicado em
Texto: Bruno de Castro
Ilustração/Infográfico: Diogo Braga

 

“Jovem trans de 21 anos é assassinada na zona Sul de São Paulo”.
“Mulher trans é perseguida e morta a tiros em avenida em Belo Horizonte”.
“Travesti é morta a pauladas e pedradas em Fortaleza”.
“Mulher trans é assassinada a tiros em Juazeiro do Norte”.
“Travesti de 23 anos é espancada até a morte no bairro Jacarecanga”.


A cada três dias de 2024, uma notícia como essa manchou de sangue as páginas do noticiário. E, assim, o Brasil encerrou o ano com 122 pessoas trans e travestis assassinadas, segundo
dossiê da associação nacional dessas populações, a Antra. Isso coloca o país no primeiro lugar do ranking mundial dessas mortes pela 17ª vez consecutiva. Ou seja: o cenário se repete desde 2008. As vítimas são sobretudo mulheres (97%) e negras (80%).

Onze desses casos registrados no ano passado aconteceram no Ceará, que fica atrás apenas de São Paulo (16) e Minas Gerais (12). É, portanto, o terceiro estado no qual mais homens trans e mulheres trans/travestis são mortas(os). Números como esses fazem a expectativa de vida dessas pessoas no Brasil ser de somente 35 anos. Em contrapartida, homens e mulheres cisgêneros chegam a 73 e 79 anos, respectivamente.

Na Defensoria Pública do Ceará (DPCE), os casos são acompanhados pelo Núcleo de Direitos Humanos e Ações Coletivas (NDHAC), do qual  a defensora Mariana Lobo é supervisora. Para ela, o estado precisa de políticas públicas articuladas e voltadas exclusivamente para essas pessoas. “A gente tem algumas ações no âmbito do Executivo de forma isolada, mas não interligada. No sistema de justiça, não existe um marcador pra isso dentro dos processos. Falta articulação pra apurar os crimes. A maioria dos inquéritos sequer é concluída. Muitas vezes, o Ministério Público pede arquivamento alegando falta de provas. Não adianta só o registro da morte. É preciso priorizar a elucidação dela. Então, os dados do dossiê não me surpreendem”, afirma a defensora.

Mariana aponta a necessidade de implementação de políticas preventivas a partir de estruturas e projetos já existentes. “Pessoas trans e travestis são públicos em que as vulnerabilidades são as mais acentuadas. A escola é um ambiente violento, falta saúde especializada, elas têm muita dificuldade de acesso a emprego formal e para nós, enquanto sociedade, é como se fosse normal o fato de pessoas negras e trans serem vítimas de homicídio porque elas “procuraram” por isso. Muitas vezes, o que acontece nos inquéritos que a gente acompanha é a própria vítima ser criminalizada. Dizem que ela era ligada à prostituição ou a alguma facção, mesmo sem ser, como se isso meio que justificasse o assassinato. A gente não pode normalizar isso”, avalia Lobo.

 

 

ÓDIO COMO ELEMENTO CENTRAL
Quem pesquisa o tema, também não se espanta com os elevados índices do Brasil e do Ceará. Na verdade, faz um diagnóstico ainda mais assustador. “Nós vivemos um processo de extermínio da população trans e travesti que tem o ódio como elemento central. Esses assassinatos são crimes de ódio. E a gente percebe isso pelo grau de violência empregado neles. É alarmante como sempre são cometidos com requintes de crueldade”, alerta a travesti e antropóloga Dediane Souza.

Ela reforça o argumento da defensora pública sobre ser necessário investir em mais políticas e projetos intersetoriais. Ou seja: não tratar a questão “apenas” como uma questão de segurança, mas também como educacional, de saúde, segurança, econômica etc. Do contrário, os números não vão recuar, visto que desde 2019 a homotransfobia foi equiparada ao racismo, com diversas penas previstas em lei, e nem isso forçou a redução dos casos (que em 2020 bateram recorde).

Dediane acredita que, embora elevadas, as estatísticas estão subnotificadas. “Os casos que estão no dossiê da Antra são só a ponta do iceberg, porque são identificados somente aqueles que a imprensa reconhece o nome da vítima. E a gente tem um histórico de a imprensa negar essas identidades. Mas o primeiro passo foi dado, que é reconhecer a transfobia como natureza da violência. A gente precisa de um investimento visível na política de empregabilidade, por exemplo; em ações que perpassem diversas áreas”, frisa.

CULTURA DO MACHISMO
À frente do Grupo de Resistência Asa Branca (Grab), a mais antiga organização LGBTQIAPN+ do Ceará, Dáry Bezerra atesta a tese de subnotificação dos casos. Segundo ela, a vivência dos movimentos indica cenário pior, especialmente pelo fato de o estado há dois anos ter uma delegacia especializada para investigar esse tipo de crime (a Decrin, com sede em Fortaleza) e, ainda assim, os autores pouco são identificados e as ocorrências não diminuem.

“As políticas aparentam não estar funcionando. Tem quem ache que a simples criação de uma delegacia especializada ou de uma Secretaria da Diversidade vai resolver tudo. Mas não vai. Ainda há um despreparo do sistema de segurança para entender o que é a LGBTfobia. E é muito fácil achar justificativa para tentar negar a transfobia. Mas o modus operandi é o mesmo. Existe um ódio atravessado na morte de uma pessoa trans que a difere da morte de uma pessoa que não é trans. Não é só um tiro; são vários. Não é só uma facada; são várias. A travesti é amarrada, é decapitada, é carbonizada… Há todo um contexto de crueldade”, afirma a presidenta do Grab.

Dáry atribui os assassinatos de pessoas trans e travestis à cultura do machismo, ainda muito forte no comportamento dos homens cearenses. “Pessoas trans e travestis não são percebidas como humanas. São objetos de uso sexual e descartáveis. E querem que a gente continue nesse lugar do fetiche e da subserviência sexual. Então, tanto faz existir ou não, matar ou não. Esse contexto precisa ser percebido pelas instâncias de segurança e educação, para saberem onde é preciso agir e gerar essa mudança de pensamento”, finaliza.

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