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Casos de pessoas que furtaram itens para sobrevivência chamam atenção de defensores públicos

Casos de pessoas que furtaram itens para sobrevivência chamam atenção de defensores públicos

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TEXTO: DEBORAH DUARTE E SAMANTHA KELLY, ESTAGIÁRIA DE JORNALISMO SOB SUPERVISÃO
ILUSTRAÇÃO: DIOGO BRAGA

Após furtar três barras de chocolate de uma farmácia de Fortaleza, um jovem em situação de rua ficou preso por 57 dias. Ele só foi solto depois que a Defensoria Pública do Estado do Ceará (DPCE) garantiu na Justiça um habeas corpus (hc) revogando a prisão mediante o cumprimento de medidas cautelares. 

O atendimento foi realizado pelo defensor público Ruan Neves Ribeiro, da comarca de Iguatu, que entrou com petição esclarecendo a situação. O homem declarou que furtou porque estava com fome, não teve uso de armas, nem ameaçou ou causou lesão corporal  em outras pessoas. Além disso, no momento da prisão, o rapaz não possuía documentos. Mesmo assim, após a audiência de custódia, a prisão em flagrante foi convertida em prisão preventiva no dia 6 de setembro deste ano e o alvará só foi cumprido no dia 1º de novembro. 

O defensor alegou a ausência de fundamentação específica e requisitos para a prisão preventiva e lembrou sobre o direito de que “a prisão preventiva não se justifica em casos de crimes de pequeno valor sem grave ameaça à ordem pública, devendo ser substituída por medidas cautelares alternativas”. Para Ruan, o decreto de prisão preventiva nesse caso foi genérico e não apresentava fatos que justificassem a prisão cautelar, entendendo que a aplicação de outras medidas cautelares seria suficiente para resguardar a aplicação da lei penal e a ordem pública.

“Tive a oportunidade de ir ao julgamento, fixar a tese que a prisão preventiva não se justifica em crimes de pequeno valor sem agravação à ordem pública. Já fica claro, serve de base para casos outros, parecidos como esse, que a gente sabe que não é a primeira, nem a última vez, onde o indivíduo por subtração de objeto de pequeno valor acaba resultando na prisão preventiva”, afirma o defensor público.

Ele destaca a atuação da Defensoria como porta-voz de pessoas que estão esquecidas e sem condições mínimas existenciais, como o jovem em situação de rua. “É esquecido pelo Estado na perspectiva de promoção dos seus direitos e só é conhecido pelo Estado em sua face policial, esqueceu desse jovem como sujeito de direitos e agora o encara como o inimigo social. O Estado atuou muito mais do que deveria atuar, uma vez que colocou no cárcere alguém que subtraiu alimento para matar a fome, e que não trouxe maior gravidade em relação à sua situação. Além disso, utilizou a medida mais gravosa, que é a reclusão de liberdade, porque existem as medidas processuais que podem ser usadas em casos assim, sob a perspectiva de resguardar uma ordem pública, que sequer resvalou nesse risco concreto”, reafirma Ruan.

Audiência de Custódia – O Brasil é signatário, desde 1992, do Pacto de San José da Costa Rica, que versa sobre os direitos humanos e prevê a audiência de custódia. Mas, somente 23 anos depois, em 2015, o país começou a adotar a prática, a partir da Resolução Nº 213, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). As audiências de custódia são vistas como um mecanismo para evitar prisões injustas e ilegais, e a reduzir a superlotação carcerária. Elas são obrigatórias para prisões em flagrante e devem ser realizadas no prazo de 24 horas. 

“É o momento em que aquela pessoa que foi presa tem o  primeiro contato com a Justiça. É neste momento que é decidido pelo juiz se a pessoa permanecerá presa ou se será liberada, sem decidir se ela é culpada ou inocente. O processo continua, mas naquele momento já é possível observar ilegalidades”, explica a defensora pública Sulamita Teixeira, que atua nas no 4º Núcleo Regional de Custódia e Inquérito, em Caucaia, na Região Metropolitana de Fortaleza.

“Aqui atendemos muitos casos de pessoas que praticaram furto em mercadinho, de mercadorias de pequeno valor, muitas vezes alimentos para saciar a fome da família. Depois da pandemia, percebemos um empobrecimento da população e como a realidade das famílias mudou. Então, é preciso ter um tratamento diferente a essas pessoas, promover políticas públicas que possam garantir dignidade”, destaca a defensora. 

A defensora pública destaca que o Direito Penal deve ser acionado apenas quando não houver outros meios para solucionar conflitos. Se existem formas de resolver a questão sem recorrer ao punitivismo e ao encarceramento, essas alternativas devem ser priorizadas. Ou pelo menos, deveriam ser. Esse entendimento vem sendo defendido, desde a década de 1960, com as primeiras discussões sobre o princípio da insignificância. 

“Já participei de uma audiência envolvendo uma pessoa presa pelo furto de uma creme de avelã, um condicionador e biscoitos. Imagine o impacto de inserir alguém em situação de extrema vulnerabilidade no sistema penal por causa de itens tão pequenos. Há muitos casos de dependentes químicos, que acabam furtando valores irrisórios para sustentar o vício, além de diversas pessoas em situação de rua. Estamos lidando com uma questão de vulnerabilidade social, não uma questão de repressão penal. É uma análise que toda a sociedade precisa fazer”, analisa Sulamita.