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Orgulho, resistência e os direitos que ainda precisam sair do papel

Orgulho, resistência e os direitos que ainda precisam sair do papel

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No Mês do Orgulho LGBT*, a Defensoria propõe uma reflexão sobre as conquistas e os desafios ainda existentes no caminho da cidadania plena na série Cidadania Colorida. Apresenta uma linha do tempo de direitos, entrelaçados aos relatos de quem encontra na luta coletiva a reafirmação de sua existência 

 

TEXTO: BIANCA FELIPPSEN
ARTE: VALDIR MARTE E DIOGO BRAGA
fotos e vídeos: millin albuquerque
REDES SOCIAIS: GIULLIAN RODRIGUES E KAMILLA VASCONCELOS

No horizonte colorido – e desigual – de um Brasil em constante transformação, os direitos das pessoas  LGBT ainda dançam entre luz e sombra. É como se cada direito conquistado fosse uma estrela entre tantas constelações que conectam relatos pessoais de dor, lutas, alegrias e recomeços. São acesas muito pelas diversas e potentes mobilizações coletivas, mas também pelo afeto, solidariedade e pela coragem. A cidadania plena para essa população é um projeto em construção — e profundamente atravessado por disputas de narrativa, de poder e [por vezes falta] de prioridades do Estado.

É fato que a conquista de direitos legais e institucionais das pessoas LGBT se acelerou de forma notável nas últimas duas décadas, especialmente a partir de 2008, e essa atuação tem se dado muito no campo do Poder Judiciário. E, embora tenha havido avanços nos direitos civis e algum progresso na representação política e na mídia, ainda se está longe de alcançar o necessário para refletir a diversidade de um país tão extenso e culturalmente diverso como o Brasil.

O Código Criminal de 1830, por exemplo, não previa punição à homossexualidade, mas também não oferecia garantias. Entre 1830 e 1999 — mais de um século e meio — os avanços se deram, sobretudo no campo simbólico e científico, como a retirada do termo homossexualidade do rol de doenças pela Organização Mundial da Saúde (1990) e, no Brasil, a despatologização feita pelo Conselho Federal de Psicologia (1985) e a proibição da terapia de reorientação sexual por psicólogos (1999). 

No início dos anos 1990, o movimento LGBT ganha força como uma resposta coletiva à epidemia de HIV/AIDS. Nessa época também há um aumento do número de grupos e a expansão do movimento por todos os estados do país, além da diversificação de tipos de organizações. Há também um marco importante: a fundação do Somos – Grupo de Afirmação Homossexual (1978-1983), um dos pioneiros na articulação do, na época, chamado ‘Movimento Homossexual Brasileiro’. Nesse período, é muito forte a presença de coletivos que iniciam suas caminhadas e também os encontros nacionais que começaram a estruturar a agenda do movimento, dentre eles, as paradas da diversidade. 

A doutoranda em Antropologia Social pela UFRN, jornalista e autora do livro “Dando o Nome” (Editora UFC, 2024), Dediane Souza, destaca que a conquista de direitos LGBT ocorre em ciclos, que avançam e recuam, sempre atravessados pela interseccionalidade das pautas. “É interessante a gente perceber que, no Brasil, a gente não tem um Legislativo que paute as nossas demandas e que aprovem legislações para nossa proteção. Mas a gente tem marcos importantes dentro do campo da legislação brasileira que garantem, minimamente, o direito a essa diversidade, como, por exemplo, a Lei Maria da Penha (2006), que reconhece as uniões homoafetivas e o Estatuto da Juventude (2013), que fala sobre o direito à diversidade. A gente sempre marca que avança e retrocede”, reflete.

Dediane Souza, 36 anos, jornalista e pesquisadora da temática

 

Aos 16 anos, Dediane iniciou sua militância no Grupo de Resistência Asa Branca (GRAB), com foco no enfrentamento ao HIV/Aids. Desde então, acompanhou de perto marcos históricos do ativismo LGBT no Ceará e no país. A Parada da Diversidade no Ceará, que completa 23 edições em 2025, simboliza essa construção coletiva. 

“A Parada [da Diversidade do Ceará] em 1999 teve cerca de 300 pessoas. Em 2008, alcançou um milhão”, lembrou. “Essas lutas não estão apartadas. Estão interligadas. Elas tomam o espaço público e fazem uma disputa de narrativa.“Elas trazem uma pauta para o debate público, agendam os meios de comunicação, as casas legislativas e mobilizam os movimentos sociais para um único som: reivindicar direitos”, reflete Dediane

Nos anos 2000, a pauta começa a dialogar com o Estado por meio de políticas públicas ainda pouco consolidadas juridicamente. Para a jornalista, a cidade de Fortaleza é parte de uma vanguarda nas lutas para a população LGBT. “Fortaleza é vanguarda nesse debate. Por quê? Porque no governo Luizianne [Lins, prefeita de Fortaleza entre 2005-2013 e hoje deputada federal pelo PT] já se reconheceu as uniões homoafetivas dentro do acesso à previdência municipal. Então quer dizer que a gente tem avanços importantes no campo, em Fortaleza, graças ao movimento social organizado”, destaca Dediane.

A partir de 2011, um novo ciclo de conquistas se inicia, agora via Poder Judiciário. O Supremo Tribunal Federal reconhece, naquele ano, a união homoafetiva como entidade familiar. Em 2013, o CNJ garantiu o direito ao casamento civil igualitário. Em 2018, o STF reconhece o direito à retificação de nome e gênero. Em 2019, criminaliza a LGBTfobia como forma de racismo.

“A gente vai para 2011, eu lembro perfeitamente que o GRAB [Grupo Resistência Asa Branca] era aqui no centro, na rua Tereza Cristina, e foi o momento onde a Suprema Corte reconheceu as uniões homoafetivas. Aquilo foi fantástico, porque a gente tem registro do primeiro projeto de reconhecimento da união civil, datado de 1995, da então deputada federal Marta Suplicy (PT-SP). Então olha como é interessante: começa-se o debate em 1995 com a Marta Suplicy, de casamento igualitário, e a gente só tem em 2011 o reconhecimento pelo STF. É muita luta e muita mobilização. Esses marcos são importantes para a gente refletir que os nossos direitos não são dados e sim frutos de muita luta dos movimentos”, destaca.

Ela também lembra do PL 122/2006, que buscava criminalizar a LGBTfobia, mas só se consolidou em 2019, por decisão do STF. “O que a gente vê é que o nosso legislativo não avança no campo das políticas públicas, mas o movimento social faz um advocacy, faz o controle social e pauta. Ao longo do tempo, o próprio movimento se profissionaliza num processo de um lobby, de uma accountability até a Suprema Corte brasileira, fazendo com que esses direitos que não foram pautados pelo Congresso Nacional ou que não foram aprovados ou nem colocados em pauta passem a existir”. Dediane alerta que, a partir de 2014, intensificam-se os ataques legislativos. “A gente passa a ser perseguido nos projetos de lei. Isso coloca nossas pautas nesse grande embaraço de disputas de narrativas.”

Para a defensora pública Mariana Lobo, supervisora do Núcleo de Direitos Humanos e Ações Coletivas da Defensoria, o fato de os avanços terem sido puxados principalmente pelo Judiciário, com forte atuação dos movimentos e da Defensoria mostra também que há uma lacuna a ser enfrentada. “Como se vê, a maioria dos avanços têm se dado de forma mais rápida pelo Poder Judiciário. Mesmo assim, essas mudanças ainda demoraram para acontecer. Relembro aqui que as primeiras tentativas de retificações de nome e gênero pela Defensoria do Ceará, em 2014, já tentavam abrir frestas para garantir na prática o direito de existir oficialmente para o Estado”, disse Mariana. 

Na verdade, o que aponta a defensora, é que tanto coletivos dos movimentos e a própria Defensoria, tentavam abrir brechas na Justiça para direitos previstos até então, apenas da Constituição Cidadã de 1988: todos são iguais perante a lei. “Instituições como a Defensoria têm também papel de vanguarda ao pautar direitos direto nos tribunais. A gente tem defendido, em várias searas, a ampliação de direitos para a população LGBT e tem atuado desde as demandas individuais como retificação de registro civil à construção de políticas públicas de proteção e no enfrentamento da violência. A Defensoria vem reforçando seu papel na consolidação de uma cidadania plena para essa população”, afirma Mariana.

Interseção entre pautas

O atual ciclo de consolidação de direitos inclui avanços normativos, reconhecimento de interseccionalidades (raça, deficiência, identidade de gênero) e políticas afirmativas. “As violações têm rostos e histórias concretas, que desafiam o Estado a ir além das decisões judiciais e produzir políticas reparadoras, com orçamento, escuta e prioridade”, complementa a defensora Mariana Lobo.

Desde 2023, o Ceará conta com uma Secretaria Estadual específica para a pauta LGBT. A Secretaria Estadual da Diversidade (SEDIV) é uma reivindicação dos movimentos e sinaliza um reconhecimento institucional inédito no estado e a possibilidade de implementação de políticas estruturadas, tendo como primeira secretária à frente da pasta, Mitchele Benevides Meira.

“Hoje tem uma palavra que está no cotidiano das pessoas, que é a interseccionalidade”, diz Dediane. “Não há como discutir cidadania [LGBT] sem tratar também de racismo, misoginia, direito à moradia, à saúde, à cidade, à terra”. Ela confirma sua origem como parte indissociável de sua identidade e militância.

“Um corpo de uma pessoa travesti vai ser marcado também por raça. Eu, por exemplo, sou uma travesti preta, sou sertaneja de Santana do Acaraú, e gosto de dizer de onde eu venho, pois isso coloca também uma perspectiva de raízes. Vivo nessa cidade já há um bom tempo e disputo essa cidade como minha, mas não só minha, mas para todas as pessoas”, relembra Dediane.

 

Ela que estuda o campo da memória como importante na construção da ancestralidade, enquanto categoria identitária. “Pensar o envelhecimento é a gente romper com aquela lógica da expectativa de vida das pessoas trans travestis até 35 anos de idade. Eu acho que a gente precisa pensar e ressignificar esses sonhos. Eu acho que em alguns momentos, inclusive na minha própria vida, sonhar não era algo dado. A gente foi construindo essas estratégias na medida em que a gente vai envelhecendo no coletivo. Esses últimos dias, venho fazendo algumas reflexões, e me deparei com a seguinte reflexão: a gente precisa fabular o nosso passado. A gente precisa criar nossos heróis, né?”, dispara Deidiane.

Confira a próxima matéria da série: “Decisão histórica do STJ garante registro com gênero neutro e fortalece reconhecimento de pessoas não binárias”. A reportagem aborda os desafios enfrentados e os direitos em disputa por quem não se identifica dentro da lógica binária de gênero.

 

*A sigla LGBT no Brasil foi aprovada durante a 1ª Conferência Nacional GLBT, realizada em Brasília entre 5 e 8 de junho de 2008. A próxima grande conferência temática – a 4ª Conferência Nacional dos Direitos das Pessoas LGBTQIA+  está programada para acontecer entre 21 e 25 de outubro de 2025. Com isso, a orientação da Defensoria — manter “LGBT” até a convenção de 2025 e adotar a nova sigla a partir dela — em  consonância com o histórico oficial dos encontros nacionais da pauta

 

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