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“Cota não é sobre ter antepassados negros. É sobre imagem”

“Cota não é sobre ter antepassados negros. É sobre imagem”

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Duas mulheres negras pautaram os debates da abertura do seminário “Políticas afirmativas e cotas raciais: o papel das bancas de heteroidentificação”, ocorrido nesta sexta-feira (5/8) na sede da Defensoria Pública Geral do Ceará (DPCE), em Fortaleza. A promotora de Justiça da Bahia, Lívia Sant’Anna Vaz, e a assessora especial dos movimentos sociais no Governo do Ceará, Zelma Madeira, discutiram aspectos da formação social brasileira que demandam do Estado a implementação de políticas afirmativas.

“Cota não é sobre ter antepassados negros. Não é sobre as experiências de racismo de cada candidato. É sobre a imagem, a aparência dessa pessoa. Se eu, uma mulher negra, não posso usar a minha ascendência branca, como de fato tenho uma avó branca, para não sofrer racismo, pessoas brancas não podem evocar uma ancestralidade negra, independente do grau, para acessar uma política pública”, pontuou a promotora baiana.

Eleita uma das 100 pessoas de descendência africana mais influentes do mundo, Lívia Vaz afirmou que o Brasil ainda não é um estado democrático de direito por ter na raça o principal fator de exclusão da população. Para a jurista, as cotas são uma reparação histórica e uma dívida do Estado brasileiro com o povo negro, cuja exploração em decorrência da escravidão durou quase 400 anos.

“Ser uma pessoa negra neste país é sofrer racismo. É inevitável! Então, enquanto a raça for um fator que impede pessoas de acessarem direitos fundamentais, o Estado tem que pautar a raça. Ações afirmativas são mecanismos de inclusão. Elas buscam uma igualdade de oportunidades para grupos historicamente excluídos. Buscam equidade. Nesse sentido, a Defensoria Pública é fundamental para caminharmos para um estado democrático de direito que nunca tivemos”, disse.

Atuante na Promotoria de Combate ao Racismo do Ministério Público da Bahia (MPBA), Lívia Vaz defendeu as bancas de heteroidentificação. Essas instâncias são mecanismos de controle da política de cotas e têm sido atacadas em todo o país. A jurista detalhou que os principais aspectos considerados por essas comissões na avaliação dos candidatos autodeclarados negros são: cor da pele, textura dos cabelos e traços faciais.

Lívia destacou ainda pesquisa do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) sobre o pertencimento racial dos magistrados brasileiros. O estudo indicou que apenas 12% são negros. No Brasil, a população negra, composta por indivíduos pretos e pardos, é próxima dos 60%. “Temos um sistema de justiça branco e masculino. Então, é uma decisão política o compromisso com a diversidade. Mas a branquitude se incomoda com as cotas. Não aceita dividir as cadeiras das universidades com os filhos das empregadas domésticas negras! De discursos, a gente está cansado. A gente quer postura antirracista”, sentenciou.

Já a assessora especial dos movimentos sociais no Governo do Ceará afirmou que as cotas permitem à população negra a criação de uma imagem e representação dela própria nos espaços de poder e instâncias as quais ela foi impedida de acessar em decorrência do preconceito racial e do mito de ser a negritude incapaz e violenta.

“Então, é muito pequeno ficar apenas no “sou contra” e “sou a favor” quando o assunto é as cotas. Porque o mito da democracia racial é uma ideologia! Por isso, eu não trato a questão racial no campo moral. Minha fala é histórica. Temos que entender a formação social brasileira para compreendermos as políticas afirmativas e o que queremos aqui.”

Doutora em sociologia, Zelma ressaltou que as políticas afirmativas, notadamente as cotas, são fruto de reivindicações dos movimentos negros datadas da década de 1970. E que a questão racial mexe com estruturas sociais e com relações de poder. “A elite branca tem medo da onda negra. Foi o que aconteceu na abolição da escravidão e é o que está acontecendo com as leis de cotas. Quando tem alguma coisa que mexe com lugares históricos, o medo branco da onda negra opera.”

Zelma classificou como fundamental o debate sobre raça dentro do sistema de justiça. “Porque o sistema de justiça garante a estabilidade do mundo. Se o mundo é racista, nós precisamos conversar com os operadores do Direito. É importante que a gente converse, porque a escravidão não é só passado. Ela tornou-se linguagem. E opera cotidianamente. Então, a gente precisa recuperar a história e contar como a escravidão operou. Nossa sociedade é racializada e há uma distribuição de privilégios e exclusões. Nós temos um projeto de nação racista e antinegro.”