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Dary e o sonho da sabedoria ancestral da felicidade

Dary e o sonho da sabedoria ancestral da felicidade

Publicado em
Texto: Bruno de Castro
Foto: ZeRosa Filho
Ilustração: Valdir Marte

Existe um lugar no qual pessoas trans, aquelas cujo gênero com o qual se identificam é diferente do sexo biológico que nasceram, também devem estar. Elas precisam morar no futuro. E um futuro como qualquer outro: iniciado no sonho. Mas vivido desde já, na urgência do hoje, com a sabedoria de quem, como Dary Bezerra, conhece a circularidade da vida e compreende que tudo, humano ou não, está conectado.

“Meu futuro é hoje. Não é só daqui a 20 anos. E a gente tem que fazer desse futuro o melhor lugar de se viver, independente de onde a gente esteja. Por isso, ser feliz agora é uma garantia de que eu vou ser feliz amanhã, que é o meu futuro. O futuro pra mim é uma certeza”, diz ela, uma pessoa não-binária, que há 14 anos fez de Fortaleza casa e veio de uma infância precária em Crato.

Foi lá, no Cariri, onde Dary sonhou pela primeira vez. “Na vida do Interior, quando a gente vem de um contexto pobre, o sonho da gente é ter um trabalho pra ajudar na renda familiar e comprar as nossas coisas. Ou seja: ter uma vida boa, estável. Mas essa vida estável e boa eu acho que não conquistei”, avalia.

Hoje autoridade no candomblé, Dary projetou ainda na infância um modo de vida atrelado à felicidade; por achar, como diz, “que o mundo seria maravilhoso”. Porque nem sempre foi. E, quando se vive no país líder mundial de assassinatos de pessoas trans, nem sempre é. “As pessoas podem ser mais livres. A gente pode viver numa sociedade menos hipócrita”, crê.

Por isso, o sonho ela acredita ser “uma audácia nossa” [pessoas trans]. “E uma audácia que a gente não abre mão, mesmo nossa sociedade sendo conservadora, fundamentalista, machista, misógina e LGBTfóbica. É difícil e a gente às vezes precisa adaptar os sonhos, mas num determinado momento eu tive consciência de que precisava estudar e fui para a Pedagogia, apesar de que a cidade onde eu morava as oportunidades eram muito escassas”, analisa.

Já formada, a construção do sonho teve papel importante dentro do terreiro. Porque é o terreiro, é o candomblé, um outro universo. Lugar no qual se pratica um jeito de viver totalmente diferente do que a gente é ensinado. Para Dary, foi esse território que a permitiu cultuar o mundo no qual acredita, estruturado na coletividade e na partilha.

“É uma outra perspectiva, baseada na cosmovisão africana, onde nós somos seres humanos e cada pessoa tem um lugar no mundo, merece respeito e ser feliz. O que um come, o outro vai comer. Você vai vestir o que tem pra vestir. É uma dimensão de humanidade. Isso é uma sabedoria ancestral: a felicidade, a prosperidade. Porque a gente não vem pra esse mundo pra sofrer, pra morrer assassinada ou pra essas mazelas todas que essas estruturas sociais como o machismo, o racismo e a LGBTfobia construíram. O terreiro me trouxe a dimensão de ser possível viver no mundo. E, a partir disso, os sonhos engavetados ou que eu achei que não seriam possíveis se tornam possíveis. A gente é capaz de ser feliz. Por isso, o meu maior sonho é ser feliz. É estar bem”, diz.

Ela deseja criar um espaço cultural em Fortaleza, no qual manifestações negras e LGBTs encontrem-se, fortaleçam-se e multipliquem-se. Uma tentativa de aproximar filosofias, visões de mundo, e promover uma energia de possibilidades (e não de concorrências). “A gente precisa se juntar, se perceber, se amar, se afetar”, diz Dary, que também é fruto de movimentos sociais e hoje preside o Grupo de Resistência Asa Branca (Grab), um dos mais tradicionais do Ceará em defesa dos direitos da população LGBTQIAPN+.

“Nos movimentos, a gente briga por direitos que têm a ver com nossos sonhos: é o sonho de viver, é o sonho da casa própria, é o sonho de acessar bem a saúde, de ir pra escola, de amar, de ter um companheiro, de andar na rua de mãos dadas, de andar na rua e não ser agredida. Tudo isso é sonho. Eu acredito que nós somos sonho. E, como pessoa não-binária, eu acredito que a gente está caminhando pra um tempo onde essas nomenclaturas, talvez, não sejam mais necessárias. Nesse momento, de disputa de políticas do país, de afirmação de identidades, de garantias de direitos, elas são importantes. Mas pessoas não-binárias mostram que é possível uma sociedade em que a gente não esteja a todo momento, todos os dias, sendo padronizadas. Onde a gente possa vestir o que a gente quer; amar quem a gente quiser”, reflete Dary.

Daqui 20 anos, além de feliz, ela também se vê rodeada de amigas e “sentada na minha cadeira num terreiro de candomblé cultuando a minha ancestralidade, cultuando oxum, senhora da minha vida, e fazendo o meu papel nesse espaço, que é o de acolhimento, de cuidado, de receber pessoas, de orientar pra vida.”

Essa orientação, Fran Costa testemunha acontecer diariamente com as pessoas assistidas pelo Transpassando, projeto social que combate a transfobia através da formação humana, educacional e profissional. “Pra mim, ser travesti é a satisfação de um desejo. Um desejo posto pra mim durante muito tempo como inalcançável. Mas ser uma mulher transexual ou uma mulher travesti é possível. E o transpassando é a materialização da luta contra a transfobia para ocuparmos um espaço, a universidade, que é importante estarmos”, diz.

Manter o cursinho é, então, uma forma de construir possibilidades de desenvolvimento pessoal desses homens trans, mulheres trans e travestis. É, portanto, sonhar cotidianamente com futuros. “É meio paradoxal, porque quando a gente fala em transexual e travesti as pessoas associam muito à morte. Mas ser hoje uma travesti é o que me permite me manter viva. Eu não sei se eu estaria viva hoje se eu não fosse a Fran. É um permanecer sonhando. E a gente sonha que pode ser melhor, porque a gente quer que as pessoas desenvolvam suas próprias potencialidades. Porque a cisgeneridade é uma estrutura e a gente, de certa forma, é ensinado a se odiar. Então, o Transpassando é um processo pedagógico entre nós e onde a questão do sonho é muito presente.”

Atualmente colaboradora da Defensoria, Fran desmistifica a existência de pessoas trans. Ela sentencia: “não é só sobre sofrimento. Não é só sobre abandono. É sobre viver, sonhar, ser feliz, se desenvolver, potencializar, apesar de. Sempre no “apesar de”, porque os dados de violência são concretos. Mas eles não podem ser a nossa camisa de força. A gente precisa continuar. Por nós mesmas. E pelas gerações futuras, porque eu espero que elas não passem pelo que a gente passou. Esse futuro precisa ser construído agora, com a gente sendo generoso consigo mesma.”