
De Dandara a bisavô, ancestralidade marca posse popular de Joyce Ramos no território quilombola no qual ouvidora nasceu
“Eu vim da mãe África.
Eu vim do Quilombo.
Já fizeram tanto pr’eu tombar,
mas eu não tombo.”
(Samba de Dandara)
Nasceu da terra, do chão sagrado quilombola, do soalho vermelho da Serra do Evaristo, em meio a cantorias e felicidades espraiadas a partir de um Baturité negro de povo e verde da natureza, a caminhada de uma filha do lugar. “Uma menina que é muito querida e só nos orgulha”, como bem disse mestra Socorro. Alguém que hoje, aos 41 anos, mulher feita, retornou ao território no qual nasceu para marcar um começo de trajetória. Francisca Joicemeiry Ramos de Brito, a Joyce, foi empossada pela comunidade como nova ouvidora geral externa da Defensoria Pública do Ceará.
Ali, na escola que estudou quando criança, sob os olhares de uma imagem do falecido bisavô e de centenas de parentes, amigos, admiradores e companheiros de ativismo, a historiadora e militante do Movimento Sem Terra (MST) entoou dizeres ancestrais. De vida. De revolução. De resistência. Do Samba de Dandara ao Canto das Três Raças, uma mulher negra pavimentou o próprio caminho com celebrações, palavras e memórias.
“Foi esse território sagrado que me fez essa sujeita. Aqui, eu aprendi a ter voz. Por isso, em qualquer espaço que vá, eu lembro da minha raiz. Lembro da minha comunidade. Mas sei que também devo aos movimentos populares o ser político que sou. Então, eu aprendo todo dia a fazer a luta. Todo dia! Eu não tinha nem 15 anos quando saí de casa. Cortei muita cerca! Ocupei muito latifúndio! E me orgulho muito disso. Porque foi por isso que me indignei com tanta desigualdade. Comigo, eu carrego um legado. Um legado de Preta Simoa. Um legado de Dandara. Mas, principalmente, um legado do meu bisavô Osório Julião. É graças a ele que eu estou aqui também. Às minhas tias. À tia [professora] Socorro. À minha mãe, que em nenhum momento interveio na minha história. E a nossa história é o que faz o que nós somos”, disse.
Em ode ao passado, rodeada dos seus, Joyce sonhou à luz do dia, em pleno terreiro e no qual pisou de pés descalços, com vidas melhores, menos precárias. Agradeceu não só a luta de quem tornou-se ancestral, mas também à chegança. Dela própria, inclusive, pois é, afinal, a primeira quilombola a ser eleita ouvidora da DPCE. É ainda a quinta pessoa negra consecutiva a ocupar o cargo. “Eu nunca fui tão bem acolhida; tão bem recepcionada como na Defensoria. Ali, eu senti que era o meu lugar. A Ouvidoria Geral Externa é o meu lugar. É o nosso lugar”, sentenciou.
E recebeu, de pronto, as boas-vindas de quem representa um verbo, defensorar, cada vez mais necessário aos dias de populações tradicionais, como a de Joyce. Planta do pé no chão, a defensora geral Elizabeth Chagas enalteceu a simbologia de uma Comunidade Remanescente de Quilombo (CRQ) sediar a posse popular da nova ouvidora da DPCE, tendo em vista que há no Ceará um mito ainda forte no imaginário coletivo de o estado não ter tido escravizados (e, consequentemente, não ter tido quilombos).
“Quando anunciamos que a posse seria aqui, muita gente me perguntou: “e tem quilombo no Ceará?”. Não só tem como estamos em um deles. E aqui repousa a chama da liberdade. Esse é um solo sagrado. Por isso, eu faço questão de ficar descalça. Ao pisar aqui, eu senti muitas energias. Sei que estou numa missão e quero fazê-la da melhor forma possível. Que nossa voz seja, então, expressão de algo que precisa ser dito. Porque todos nós passaremos. Mas momentos como esse marcarão histórias. Por isso, é muito importante pra gente estar aqui. Se não for por significados, não vale a pena a nossa existência”, afirmou Elizabeth Chagas.
Como lugar de fortalecimento que é, o quilombo da Serra do Evaristo fez reconhecerem-se negritudes gemelares. Mulheres negras que, na quimera e na bravura, celebram um futuro possível. Um afrofuturo. “Nós ainda não temos ocupado nessa sociedade lugar de vantagem. E você hoje, Joyce, assume um compromisso diante da sua comunidade. Sendo toda escuta um ato político e tendo nós, mulheres negras, sempre propósitos coletivos, ao ir pra Ouvidoria, Joyce, você carrega toda essa comunidade com você”, pontuou a secretária estadual da Igualdade Racial, Zelma Madeira, no ato representando o governador Elmano Freitas.
Mas quilombo é também (ou sobretudo) lugar de encontro. De atesto do quão mais forte é algo quando se está unido, florescendo da diversidade o respeito a outros povos. Inclusive ao branco, ainda tão cobrado por dívidas seculares. “Esse é um momento histórico. Pela posse em si ser numa comunidade quilombola, mas também para o que isso representa para o povo da Serra do Evaristo. Você, Joyce, é a esperança de quem grita por justiça social. Por mais direitos. Por mais igualdade. Esse é nosso papel enquanto ser humano. E vocês carregam uma história bonita e da qual me orgulho”, frisou o prefeito de Baturité, Herberlh Mota.
Originária em África, da sabedoria dos povos Akan, aqueles oriundos de Gana e da Costa do Marfim, a filosofia Sankofa ensina: se deseja ressignificar o presente e viver um futuro, é preciso não esquecer o passado. Talvez por isso a comunidade preencheu o pátio onde Joyce foi empossada de imagens de figuras históricas. Gentes como Dandara, Nelson Mandela, Martin Luther King e Zumbi dos Palmares. Olhares que testemunharam uma mais velha saudar uma mais nova.
“Joyce, nós te amamos! Você é um orgulho pra comunidade. Saiu daqui na adolescência porque queria ir além e foi. Avançou mais. Hoje, nós empossamos essa menina com orgulho. Tá todo mundo feliz e desejando que você tenha muito sucesso. Porque quilombo é assim: todo mundo é gente um do outro. Nossos costumes valorizam sempre o outro. Então, que você vá ainda mais além. Com muito sucesso e muita paz”, decidiu mestra Socorro.