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Defensores classificam como importante e necessária decisão do STJ que rejeita tese de “racismo reverso”

Defensores classificam como importante e necessária decisão do STJ que rejeita tese de “racismo reverso”

Publicado em
Texto: Bruno de Castro
Ilustração: Valdir Marte

A decisão do Superior Tribunal de Justiça que rejeita a tese de “racismo reverso” no Brasil foi classificada como “importante e necessária” por defensoras e defensores públicos cearenses. Firmado nesta terça-feira (4/2), o entendimento do STJ deu-se por unanimidade durante julgamento de caso ocorrido em Alagoas, no qual um homem negro foi denunciado pelo Ministério Público daquele estado por injúria racial contra um homem branco e de origem europeia.

Essa foi a primeira vez que a Corte se manifestou sobre o assunto, determinando a anulação de todos os atos do processo. O relator, ministro Og Fernandes, argumentou só ser possível alegar a prática de injúria racial quando o objetivo for proteger uma minoria social. Na opinião dele, esse não é o caso da população branca – o que torna ilegal a denúncia do MP-AL. Para fundamentar a decisão, o Protocolo de Julgamento com Perspectiva Racial do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) foi tomado como referência.

 

REPERCUSSÃO
Presidente do Comitê de Promoção e Defesa da Igualdade Étnico-Racial da Defensoria Pública do Ceará (DPCE), o subdefensor geral Leandro Bessa considera a decisão um marco fundamental para acabar com qualquer margem de interpretação legal quanto à possibilidade de existência do “racismo reverso”. Ele pondera que: embora a população negra seja sim maioria numérica no Brasil (56%, segundo o IBGE), não é ela quem está em espaços políticos de poder, não é ela quem recebe os melhores salários e muito menos é ela quem goza de boa qualidade de vida.

É justo o contrário. Indicadores sociais atestam pessoas negras como excluídas das câmaras de vereadores, das assembleias legislativas e do congresso nacional, bem como dos altos cargos das empresas. E é nas regiões de Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) mais baixo que elas moram. Esses e outros fatores as colocam na condição de “minoria sociológica”, expondo-as à opressão das decisões tomadas pela população branca – que, mesmo sendo minoria numérica, é quem há séculos vive com os melhores indicadores sociais.

“O racismo é uma manifestação de poder. A racialização de pessoas negras atendeu a um projeto de colonização e hoje permanece a serviço da subalternização dessas mesmas pessoas. É um sistema que coloca todos nós em posições diferentes, opostas, em que um sempre perde e outro ganha. Pela estrutura do nosso país, pelo modo como o Brasil foi formado, às custas da escravização de pessoas negras, nós, pessoas brancas, sobretudo os homens brancos, somos favorecidos de inúmeros privilégios que pessoas negras não são. O branco sempre é visto como o merecedor de tudo, enquanto o negro é visto com desconfiança. O branco é quem decide, enquanto o negro é quem recebe ordem. Historicamente tem sido assim. Então, é impossível uma pessoa negra praticar injúria racial contra uma pessoa branca. A decisão do STJ afirma essa impossibilidade e aponta para um futuro de mudanças que a luta antirracista há muito tempo reivindica”, afirma Leandro Bessa.

Uma das defensoras públicas que ingressou na DPCE por cotas raciais, uma política de reparação à exclusão histórica do povo negro dos espaços de poder, Rayssa Cristina define a decisão do STJ como “um avanço importante para explicar o óbvio”. Ela sublinha que a lei da injúria racial destina-se expressamente à punição de ofensas sobre a condição dos grupos não brancos. Ou seja: proferidas contra negros, indígenas, orientais e outras etnias.

“O racismo não pode ser tratado como algo superficial. Ele está na estrutura da nossa sociedade. Sendo assim, pessoas brancas não sofreram historicamente o processo de segregação e de impedimento de acesso a direitos no Brasil como aconteceu com a população negra e outras minorias sociais. Se a pessoa branca não sofre o mesmo estigma da pessoa negra, não faz sentido ela gozar de uma proteção constitucional. Caso uma pessoa branca se sinta ofendida por algo que uma pessoa negra disse ou fez, ela pode abrir um processo de crime contra a honra. Mas não de racismo”, pontua.

Já o defensor Raul Sousa destaca que, com a decisão do STJ, futuros processos com esse teor não terão respaldo na legislação – ou seja: serão rejeitados – porque será possível recorrer ao que no Direito é chamado de “impossibilidade jurídica do pedido”. Além disso, o entendimento dos ministros também enfraquece o discurso bastante comum de grupos conservadores e de políticos da extrema direita sobre o fato de pessoas brancas sofrerem racismo.

“A decisão do STJ deve ser comemorada não apenas por falar algo óbvio. Ela deve ser comemorada em especial por ser uma decisão pioneira em que a norma jurídica é interpretada a partir do lugar social do oprimido. É uma decisão que inverte a nossa tradição constitucional e examina a norma jurídica de outro viés, com um olhar antidiscriminatório. É um dos momentos raros em nosso sistema jurídico que se reconhece que a raça é um fator de diferenciação entre grupos de pessoas e que as instituições jurídicas devem criar mecanismos processuais para não revitimizar pessoas que já são postas à margem da sociedade. Nós, negros, devemos comemorar essa decisão”, afirma.

Para o Instituto de Defesa da Pessoa Negra, a decisão do STJ “é fundamental para impedir a distorção da luta de anos de resistência do movimento negro brasileiro e do uso indevido da lei”, pois “racismo reverso” é algo sem base jurídica. “Essa vitória reforça que a atuação coletiva e jurídica protagonizada pela advocacia negra é fundamental para o Sistema de Justiça desse país”, finaliza o IDPN em post no Instagram.