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Defensores comentam “direito ao esquecimento” e alertam: não dá para apagar fatos históricos

Defensores comentam “direito ao esquecimento” e alertam: não dá para apagar fatos históricos

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Os últimos dias foram movimentados no ordenamento jurídico brasileiro por conta do julgamento do Supremo Tribunal de Justiça (STF) de um pedido de “direito ao esquecimento” feito para a morte de Aída Curi. Na sessão de 11/2, a corte rejeitou a solicitação da família para sites retirarem do ar links alusivos ao episódio e as empresas de comunicação serem proibidas de veicular quaisquer materiais a respeito do caso, ocorrido há 62 anos, em 1958, no Rio de Janeiro.

Foi a primeira vez que o STF posicionou-se sobre uma demanda dessa natureza. A pauta, porém, já tem sido discutida em tribunais internacionais e há decisões favoráveis à garantia desse direito. Na Alemanha, por exemplo, o Judiciário proibiu plataformas de busca virtual e veículos de comunicação de mencionarem uma chacina de policiais datada de 1969. Trata-se do caso Lebach, um clássico da jurisprudência constitucional daquele país.

Nos Estados Unidos, o tema também figura no radar dos juristas. “O direito ao esquecimento precisa ser analisado caso a caso. O tribunal alemão entendeu que já tinha passado muito tempo desde o crime e a imprensa não podia ficar importunando o acusado indeterminadamente, sendo que ele já tinha cumprido pena. Aqui, o STF avaliou que o caso em questão já tinha transbordado a privacidade da família, porque teve uma repercussão muito grande na época. Não fazia sentido o direito ao esquecimento de algo já público”, explica a supervisora das Defensorias Cíveis do Fórum Clóvis Beviláqua, em Fortaleza, defensora Luciana Alencar.

O caso Aída Curi chegou a ser tema de programa policial de televisão e veiculado em rede nacional, tamanho o alcance da morte da jovem – que envolveu acusações de tentativa de estupro, atentado violento ao pudor e homicídio contra dois homens e um adolescente. Ao fim do julgamento, à época, apenas o jovem foi responsabilizado por assassinato. Os dois adultos foram condenados pelos outros crimes. O tribunal entendeu que Aída foi violentada sexualmente e jogada do 12º andar de um prédio em Copacabana. Morreu, aos 18 anos, em função da queda. A família, incomodada com as reiteradas citações do episódio pela imprensa desde então, pediu à Justiça para o episódio ser apagado.

Para o STF, no entanto, o direito ao esquecimento não se aplica nesse caso. Alguns ministros alegam, inclusive, que acatar a tese seria incompatível com a Constituição Federal, pois iria ferir o direito à liberdade de expressão. O entendimento da Corte foi o de que “eventuais excessos ou abusos no exercício de liberdade de expressão e de informação devem ser analisados caso a caso, a partir dos parâmetros constitucionais, especialmente os relativos à proteção da honra, da imagem, da privacidade e da personalidade em geral e as expressas e específicas previsões legais nos âmbitos penal e cível.”

Defensores ponderam que, além da liberdade de expressão, o direito ao esquecimento deve ser interpretado junto do direito à privacidade. Além disso, ele não se sobrepõe a fatos históricos. Não há como aplicá-lo, por exemplo, a crimes contra a humanidade, como a escravidão africana e o Holocausto. Esse revisionismo – já bastante criticado por historiadores – seria impossível porque, apesar de hediondos, ambos os episódios fazem parte do desenvolvimento das sociedades, da humanidade como um todo. Ou seja: são de amplo apelo público, determinantes para conjunturas sociopolíticas até hoje e envolvem ainda milhões de famílias cujo direito à memória (e a eventuais reparações, históricas e pecuniárias) também deve ser assegurado.

Também atuante em causas cíveis em Fortaleza, o defensor público Carlos Levi Costa Pessoa destaca que o STF julgou um recurso extraordinário com repercussão geral. Para além de dar um desfecho ao caso Curi, isso significa que a Corte Superior fixou precedente a ser aplicado em casos semelhantes. Pela sentença, o direito ao esquecimento não é considerado pelo Supremo como algo fundamental, muito embora a doutrina civilista preveja o direito à personalidade no que tange à proteção ao nome, à honra, à intimidade etc.

“O STF diz que [o esquecimento] não é um direito fundamental porque temos a liberdade de expressão, que também tem que ser respeitada. Quando a informação é obtida de forma lícita, isso fica dentro do exercício da liberdade de imprensa, ainda que o fato possa ser negativo para algumas pessoas. Se é verdadeiro, a imprensa tem todo o direito de divulgar, até porque há ainda o interesse público de se tomar conhecimento daquela informação. Comparando a honra pessoal com a liberdade de informação, a liberdade de informação prevalece. Agora, se a informação foi obtida de maneira ilegal ou é mentirosa, e hoje está muito em voga o debate das fake news, aí já não se trata de um direito da imprensa de divulgar e sim de um abuso. O julgamento do STF fortalece a liberdade de imprensa, o bom jornalismo”, avalia Levi Pessoa.

O Ceará não tem pedidos de aplicação do direito ao esquecimento que sejam de conhecimento público. Os defensores revelam, no entanto, serem comuns solicitações de reparação por dano moral causado pela veiculação de reportagens nas quais há acusações infundadas e condenações prévias de pessoas suspeitas de crimes. Nesses casos, não há o uso expresso de aplicação do direito ao esquecimento na ação judicial, mas há o pedido para retirada de links da Internet, assim como esclarecimentos em canais de televisão na mesma proporção à acusação ou retratação impressa, se a plataforma em questão for jornal e/ou revista já veiculados.

Para o defensor José Valente Neto, atuante na esfera cível em Fortaleza, a decisão do STF “relativizou demais o direito ao esquecimento, apesar da importância gigantesca da garantia da liberdade de expressão”, disse. “Acho que o STF perdeu uma grande oportunidade de definir melhor o que é o direito ao esquecimento. Dava pra decisão ser mais sofisticado e menos genérica. No lugar de resolver, ficou mais confuso o que realmente pode ser entendido como direito ao esquecimento. Além disso, demorou demais pra isso ser decidido”, avalia.

Ele refere-se ao fato de o caso Aída Curi ter sido julgado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) em 2013 e a deliberação do Supremo sair só agora, quase oito anos depois. “Nada impede de em outro caso o entendimento atual mudar. Mas, até isso acontecer, com a decisão do STF da semana passada, a situação foi resolvida e entendeu-se que não há o direito de ser deixado em paz quando a pessoa está envolvida em algum acontecimento público”.

Valente destaca que, apesar de essa ter sido a primeira vez que o Supremo julga um direito ao esquecimento, o STJ já lidou com demandas do tipo. Causas como o filme adulto protagonizado por Xuxa e a veiculação de programa em rede de televisão nacional, em 2006, sobre a chacina da Candelária, ocorrida em 1963. Na primeira situação, a apresentadora teve a solicitação negada; na segunda, o STJ entendeu pela obrigatoriedade do pagamento de uma indenização a um homem citado no material como suspeito quando anos antes da veiculação do programa ele já havia sido inocentado.

“A decisão de agora do STF uniformiza o entendimento no Brasil quanto ao direito ao esquecimento. O Supremo firmou uma tese, entendeu que o direito ao esquecimento é incompatível com a Constituição Federal porque, na verdade, o que estava sendo decidido era entre o direito ao esquecimento e o direito à memória coletiva”, finaliza o defensor público.