
Direito à dupla maternidade e desafios das mães solo: as diferentes lutas no direito de pertencer
Texto: Kamilla Vasconcelos e Déborah Duarte
Ilustração: Diogo Braga
Famílias homoafetivas que sonham em ter filhos e enfrentam desafios financeiros têm encontrado na inseminação caseira uma alternativa viável para concretizar seus projetos de maternidade. Essa prática surge como uma resposta ao alto custo das clínicas de reprodução assistida, às exigências do Sistema Único de Saúde (SUS) para acesso ao serviço gratuito e às taxas de sucesso do procedimento. Contudo, a informalidade da técnica muitas vezes leva essas famílias a buscar amparo judicial para garantir o reconhecimento legal de seus vínculos, incluindo o direito de registrar legalmente duas mães no documento de nascimento da criança.
Foi o que aconteceu com Verônica Matos e Stephany Sousa. As duas estão juntas há mais de 9 anos e após um período de planejamento, decidiram concretizar o sonho de um novo integrante na família. Em 23 de dezembro de 2023, veio uma menina. Junto com ela, veio o desafio de comprovar, perante a Justiça, que Verônica, a mãe não-biológica, também tinha direitos maternos. Foi nesse contexto, poucos meses após o nascimento, que juntas recorreram à Defensoria Pública do Estado do Ceará (DPCE) para obter este reconhecimento.
“As mulheres sempre desejaram realizar o sonho da maternidade, tendo planejado passo a passo os meios para alcançar esse objetivo, investindo o tempo comum e recursos financeiros para realização de um pré-natal, exames e parte em conformidade com as exigências médicas. Com o nascimento da criança, elas realizaram toda a preparação da residência para o recebimento da recém-nascida e recorreram à Defensoria para pedir a dupla maternidade”, destacou o defensor público Régis Coe Girão, supervisor do Núcleo Descentralizado do bairro João XXIII, que deu entrada na ação judicial.
De acordo com ele, trata-se de uma ação de parentalidade afetiva, também conhecida como filiação socioafetiva. “É o reconhecimento jurídico da paternidade ou maternidade de uma pessoa sem que haja vínculo de sangue. É uma forma de parentesco civil que tem os mesmos efeitos da paternidade ou maternidade biológica”, complementa o defensor.
Stephany Sousa relembra que a criança foi registrada ainda no cartório do hospital, mas sem o nome da outra mãe. “Nós precisamos buscar a Defensoria porque no cartório do próprio hospital não quis inserir o nome de nós duas na certidão, pois o nosso método de inseminação foi caseiro. Quando é inseminação feita na clínica, eles fazem um documento confirmando que aquela criança foi fruto de uma inseminação artificial ou fertilização in vitro e aí registra-se sem nenhum problema. Como a gente não tinha essa documentação, ficou apenas meu nome”, explica.
O caso comprova ainda as desigualdades no reconhecimento de parentalidade entre casais heterossexuais e homoafetivos, além claro de um abismo econômico. Apesar da Constituição garantir ‘a igualdade perante a lei’, na prática, vê-se que há muito ainda a ser conquistado. Um exemplo claro: se um homem quiser registrar a paternidade, a qualquer tempo, basta ele dirigir-se a um cartório de registros informando ser pai de alguém que não tenha pai declarado. Porém, no caso de um casal homossexual, não é possível fazer o mesmo.
“O Provimento 149/2023 do CNJ estabelece, no Artigo 505, que o reconhecimento voluntário da paternidade ou maternidade socioafetiva para pessoas acima de 12 anos será autorizado em cartórios. Essa regra foi criada para evitar casos de ‘adoção à brasileira’ (quando crianças pequenas são registradas sem os devidos processos legais), mas acaba dificultando o reconhecimento da dupla maternidade em situações semelhantes. Apesar de termos avançado em termos de leis, ainda se dá prioridade ao vínculo biológico na definição de parentalidade. E é exatamente nesse contexto que a Defensoria Pública entra. Para garantir, mesmo que seja por via judicial, o direito dessas maternidades ou paternidades”, explica a defensora pública Michele Camelo, supervisora das Varas de Família de Fortaleza, que acompanhou o caso.
Para iniciar o processo legal do registro da filha, Verônica buscou a DPCE. Com a companheira ainda de resguardo, tomou para si a responsabilidade de oficializar sua maternidade. “A Defensoria nos amparou em todos os momentos, desde o primeiro atendimento quando pedi orientações, dos documentos que precisava levar. E também durante o acompanhamento da ação, no Fórum. E o processo não demorou como eu achei que demoraria, sendo bem sincera. Durou menos de seis meses. Foi tudo muito rápido, o que mais me impressionou”, revela.
O processo iniciou em maio de 2024 e em novembro já tinha decisão favorável para a família. O juiz da 13ª Vara de Família julgou procedente o pedido, determinando ainda a inclusão do nome da outra mãe no registro civil da criança.
Ansiosas pelo parecer favorável, Verônica e Stephany olhavam quase todos os dias o processo. “E por incrível que pareça nós nunca estávamos juntas na hora de olhar. Mas justo no dia que a gente tava, saiu a decisão. Eu fiquei muito emocionada, ela também. A gente se abraçou. Foi algo que concretizou tudo que a gente sempre imaginou. Porque é o direito de pertencer da Nina. Para que as pessoas não falem: “ah, é só a companheira dela”. Não. É minha esposa, mas é a mãe dela também. E nós somos muito gratas de conseguir viver nosso amor. Apesar de ainda ser muito difícil, a gente tem onde buscar nossos direitos e a Defensoria foi fundamental nessa parte. Nos acolheu, nos entendeu como casal desde o início, não nos diminui em nenhum momento. Então esse documento é, sobretudo, para garantir os direitos da Nina”, comemora Stephany.
Agora, o casal projeta um novo desafio: registrar a filha mais velha, de 11 anos, também no nome de Stephany. E a Defensoria, sem dúvidas, será novamente uma alternativa para essa realização. “Quando a Stephany chegou na minha vida, ela tinha quase dois anos e cresceu junto com ela. Ela sempre soube que a Stephany era mãe dela, não madrasta. Se qualquer pessoa perguntar quem é a Stephany ou a Teté, ela vai dizer: é minha mãe. Então, agora, sabendo que podemos, nós vamos recorrer novamente à Defensoria”, afirma Verônica.
OUTRAS LUTAS
Entre pedidos de divórcio, partilha, dissolução, guarda, pensão, cumprimento de sentença e outros, o Direito de família tem sido assunto recorrente nos guichês da Defensoria Pública. Só nos meses de janeiro a novembro de 2024, mais de 150 mil procedimentos sinalizam que as questões familiares são urgentes à população cearense.
Uma das pessoas que cruzou as portas da instituição para reivindicar também os direitos das filhas foi Sarah Cristina Nobre. Mãe solo há mais de dez anos, ela tem uma filha de 17 e outra de 12 anos. Apesar de contar com uma rede de apoio, como a mesma faz questão de lembrar, se depara diariamente com os desafios de sustentar financeira e emocionalmente as duas garotas.
Chegou na Defensoria através da Casa da Mulher Brasileira. Lá, recebeu orientações não apenas jurídicas, com o pedido de guarda e pensão alimentícia, mas também contou com atendimento psicossocial, processo que foi fundamental para compreender todo o contexto de violência doméstica e familiar que viveu por vários anos.
A defensora Michele Camelo reflete: “nosso compromisso é assegurar que cada pessoa tenha acesso à representação necessária para enfrentar os desafios familiares. É emocionante testemunhar famílias se reerguendo, crianças encontrando lares mais seguros e pais recebendo soluções para suas inquietações. Estamos aqui para apoiar aqueles que muitas vezes não conseguem ser ouvidos, oferecendo a eles a chance de seguir em frente com dignidade e justiça. Cada caso que atendemos representa uma oportunidade de transformar vidas e fortalecer os laços familiares da nossa sociedade”, destaca.
“Durante todos esses anos, eu lutei enquanto eu pude, enquanto eu suportei, sozinha. E quando eu fui em busca de saber quanto era um advogado pra finalmente resolver isso, não estava nas minhas condições financeiras. O que eu consigo receber do meu salário é para prover os custos de casa, da alimentação, da escola e do plano de saúde delas. A gente já vive muito no limite. E se não fosse a Defensoria de forma gratuita, talvez eu não tivesse conseguido isso”, explica Sarah.
Enfermeira formada há quase 8 anos, Sarah relembra os esforços para proporcionar, sempre, uma vida melhor às garotas. “Eu era técnica de enfermagem, voltei a estudar e me formei. Teve dia que eu precisei levá-las à faculdade, porque não tinha com quem deixar. A minha família me ajuda, é a minha rede de apoio, mas às vezes também ninguém pode e a gente tenta organizar da melhor forma possível. Hoje em dia, mesmo com minha graduação, ainda é puxado. Chego às sete da manhã e saio às sete da noite. Às vezes, pego o plantão dobrado pra me ajudar a complementar a renda. Quem me ajuda na dinâmica das meninas, de ir pegar na escola, por exemplo, é minha irmã”, contextualiza.
Ela conhece as dificuldades de ser uma mãe solo. “Não é justo uma mãe trabalhar, abdicar de tempo, dinheiro, atenção, fazer tudo sozinha, sendo que você não fez seu filho sozinho. Você tem que mostrar para o outro a realidade de que ele também precisa ter responsabilidade. Foi através da Defensoria que eu consegui isso. Não é a porcentagem que vai ser o suficiente para sustentar um filho. Mas, pelo menos, mostrar para aquela pessoa que ela tem obrigações”, reflete.