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Do cheque pré-datado aos golpes digitais: 35 anos de direitos e desafios do consumidor no Brasil

Do cheque pré-datado aos golpes digitais: 35 anos de direitos e desafios do consumidor no Brasil

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Em 11 de setembro de 2025, o Código de Defesa do Consumidor (CDC) completa 35 anos. Criada pela Lei nº 8.078/1990, a norma surgiu em um contexto marcado pelo uso do cheque pré-datado, pela instabilidade da inflação e pela baixa proteção contra práticas abusivas de mercado. Em três décadas, o consumidor brasileiro trocou o cheque pré-datado pelos pagamentos instantâneos, saíram as etiquetas vencidas e entraram os golpes digitais e a infinidade de existências de documentos para financiamento para o crédito fácil. Aos 35 anos, o CDC precisa se reinventar para acompanhar uma nova era: mais conectada, mais veloz e muito mais vulnerável. O que permanece é a necessidade de proteção.

Rebecca Machado, supervisora do Nudecon

Mais do que regular e orientar o ato de comprar, o Código abriu espaço para um debate mais amplo sobre cidadania, inclusão, sustentabilidade e direitos coletivos. Ao longo de sua trajetória, o CDC se consolidou como um marco vivo e se projeta como instrumento de transformação social. “Aos 35 anos, o CDC não envelhece, ele amadurece. Sua essência protetiva permanece vital e precisa, em verdade, ser compreendida e bem aproveitada. Em um mundo onde a informação virou commodity e a atenção se tornou moeda, precisamos reafirmar o consumidor como sujeito de direito”, explica a supervisora do Núcleo de Defesa do Consumidor da Defensoria do Ceará , Rebecca Machado.

“Tudo mudou dos anos 90 para os dias de hoje. Saímos de uma sociedade analógica e do pensar duas vezes antes de tomar decisões, para uma realidade em que muitas vezes sequer pensamos. Na era da hiperinformação, vivemos um paradoxo inquietante: quanto mais informação possuímos, menos compreensão efetiva conseguimos extrair dela”, contextualiza a defensora. Ela explica que a “informação hoje não significa compreensão, pois se mal comunicada, não produz conhecimento; pelo contrário, intensifica a desorientação”. 

Isso significa que as pessoas não compreendem os contratos de adesão que fazem, consomem mais e com produtos de menor qualidade, não compreendem as políticas de privacidade e, por vezes, as ofertas podem mascarar práticas predatórias. Os chamados algoritmos – que mapeiam a preferência e uso de pessoas nas redes –  podem induzir ao consumo desenfreado e, muitas vezes, regulam até mesmo preços. “O consumidor, bombardeado por notificações, perde a capacidade de refletir sobre a realidade dos contratos”, pondera a defensora.

O assessor da Defensoria, Enzo Perdigão, complementa que “é necessário reconhecer que não se trata apenas de prevenir e reparar danos, mas também buscar mitigá-los. Como sujeito de direitos, o consumidor não pode ser reduzido a simples ferramenta utilizada para validar contratos, como ocorre usualmente com captura de biometria facial, utilizada como assinatura digital, sem que o consumidor tenha conhecimento sobre o objeto da contratação. Com a realidade cada vez mais crescente de contratações digitais, na mesma proporção cresceu a vulnerabilidade do consumidor”, avalia

Para ele, “o bombardeio e o excesso de informações é fato notório, mas as informações são rasas, desprovidas de qualquer profundidade e muitas vezes não informam adequadamente o consumidor. Deve-se exigir transparência sobre como dados pessoais: como são coletados, processados, compartilhados e monetizados”, explica.

Consumidor: entre algoritmos e dívidas

O avanço da inteligência artificial (IA) impõe ao Código de Defesa do Consumidor um desafio inédito: como regular relações de consumo mediadas por sistemas automatizados que decidem, influenciam e aprendem com o comportamento do usuário? De marketplaces a redes sociais, passando por bancos e plataformas de crédito, o consumo e as relações com os serviços são redefinidos pela forma como produtos são oferecidos, os preços são ajustados e as decisões são tomadas. A proteção da privacidade, da liberdade de escolha e da informação torna-se ainda mais complexa quando essas decisões são invisíveis, automáticas e difíceis de contestar.

Assim, os desafios do CDC acompanham a própria ampliação da cidadania. “O desafio que se impõe para o futuro é atualizar a proteção ao consumidor diante das novas realidades do mercado, sem perder de vista seus princípios fundantes: informação, transparência, equilíbrio e respeito à dignidade da pessoa humana”, completa a supervisora.

A Defensoria vê o número crescente da procura no dia a dia do Núcleo como alarmante. Em 2024, foram 11.837 procedimentos na unidade que fica na Cidade dos Funcionários. Só de janeiro a julho, este número já ultrapassa 8 mil demandas. “O consumidor brasileiro está entre os mais conectados do mundo, mas também entre os mais vulneráveis a fraudes digitais e ao endividamento justamente porque parte dele pertence a grupos vulneráveis, como idosos ou mesmo vulneráveis digitais, que continuam sendo alvo recorrente de abusos e golpes.”

Dados comprovam o que ela diz. Números mais recentes mostram que 51% dos brasileiros já foram vítimas de fraude digital em 2025, segundo a Serasa Experian. Mais da metade sofreu prejuízo financeiro, que chega em média a R$2.903,96, um aumento de 44% em relação ao ano anterior. Entre idosos, 57,8% relatam ter sofrido tentativas de fraude. Para 70% deles, identificar enganações online continua sendo um desafio. 

O endividamento das famílias brasileiras é outra questão recorrente no Núcleo. Ele atingiu níveis recordes: 78% dos lares têm dívidas, maior índice da série histórica. Quase um terço das famílias (29%) está com contas em atraso, e a dívida média é de R$2.444, segundo a CNDL/SPC Brasil. Jovens ingressam cada vez mais cedo nesse ciclo, impulsionados pelo crédito fácil e pela lógica do consumo imediato.

Como chegamos até aqui: as evoluções ao longo da História

Muitas vezes se imagina que o Código de Defesa do Consumidor (CDC) foi criado nos anos 1990 apenas para regular grandes transações, como a compra de automóveis e eletrodomésticos de alto valor. No entanto, sua aplicação esteve presente também nas situações mais cotidianas, como uma simples ida ao supermercado. Antes da vigência do Código, era comum encontrar pães, biscoitos e bebidas sem data de validade ou tabela nutricional.

Em reportagem publicada pelo portal UOL em 11 de setembro de 2015, o advogado Marcelo Sodré, que integrou a diretoria do Procon de São Paulo, relatou que um dos maiores problemas enfrentados antes do CDC era o comércio do leite. Segundo ele, os rótulos indicavam validade para a segunda ou terça-feira, mas os supermercados descongelavam o produto e o recolocavam à venda na semana seguinte, como se ainda estivesse próprio para consumo.

Outro exemplo importante está nas propagandas. Antes da entrada em vigor do CDC, em 1990, não havia a mesma proteção legal, e os anúncios podiam ser enganosos ou abusivos. Quem viveu os anos 1980 e início dos anos 1990 lembra de comerciais que usavam crianças com frases como “peça já para sua mãe” (induzindo consumo infantil), ou a venda de brinquedos sem indicação etária, sem controle de materiais e sem aviso sobre possíveis riscos. Era comum também o uso de testemunhos falsos, informações inverídicas e omissões capazes de induzir o consumidor ao erro. Até mesmo programas inteiros de televisão vendiam produtos sem qualquer regulamentação, como facas que prometiam cortar até madeira ou meias-calças “indestrutíveis”. A prática se estendia a diversas áreas: contratos colocavam o consumidor em extrema desvantagem, produtos sem prazo de validade ou sem garantia em caso de defeito.

Nessa época, as relações de consumo no Brasil eram reguladas, em grande parte, pelo Código Civil de 1916. O problema era que o Direito Civil, por si só, não conseguia abranger as especificidades do consumo, levando a interpretações forçadas e, muitas vezes, equivocadas para resolver conflitos.

Amélia Rocha, defensora de segundo grauA necessidade de normas específicas com esta finalidade, na verdade, é anterior ao próprio CDC e remonta à Revolução Industrial (1760-1840). Naquele período, as negociações eram feitas diretamente entre comerciantes e consumidores, sem mediação do Estado. Os contratos eram elaborados de forma unilateral pelos empresários, cabendo aos consumidores apenas aceitá-los. Na verdade, o direito do consumidor é muito mais antigo. O Código de Hamurabi, elaborado mais de 2000 a.C (antes de Cristo), já regulava aspectos das relações comerciais. Por exemplo, a lei nº 235 estabelecia: “se um bateleiro constrói para alguém um barco e não o faz solidamente, se no mesmo ano o barco é expedido e sofre avaria, o bateleiro deverá desfazer o barco e refazê-lo solidamente à sua custa; o barco sólido ele deverá dá-lo ao proprietário”. Qualquer semelhança não é mera coincidência com o artigo 18 do atual CDC: “os fornecedores de produtos, duráveis ou não, respondem por vícios de qualidade e o consumidor pode optar por receber um novo produto em perfeitas condições de uso”.

Amélia Rocha, presidente do BrasilCon e defensora pública de segundo grau, destaca que o Código permanece atual justamente por estar fundado em princípios que atravessam épocas. “A informação é o primeiro direito do consumidor e, ao mesmo tempo, a base para todos os outros: sem informação, não há liberdade de escolha e sem ela, não há contrato válido. Não é uma assinatura, mas sim a informação prévia que valida o contrato de consumo”, afirma. Ela leva esse debate a sério e para além do universo jurídico, com um espaço semanal no rádio, traduzindo em linguagem simples os conceitos do direito do consumidor para auxiliar a população.

Se, nos anos 1990, a preocupação central era conter o desenfreado mercado de consumo, suas cláusulas abusivas em contratos e garantir transparência nas relações de consumo, os desafios atuais assumem novos contornos. O avanço das fraudes digitais, a captura indevida de dados pessoais, o superendividamento das famílias e a pressão ambiental crescente colocam o Código de Defesa do Consumidor em posição ainda mais estratégica.

 “O consumidor brasileiro, que, – em todas as idades tem usado muito o ambiente digital – tornou-se também um dos mais expostos a golpes virtuais. O crédito fácil, sem informação e sem cuidado com a capacidade de reembolso, impulsionou índices recordes de endividamento e passou a atingir de forma cada vez mais intensa a juventude e as pessoas idosas. Ao mesmo tempo, as escolhas de consumo ganham peso decisivo no debate ambiental, ampliando responsabilidades individuais e coletivas diante da crise climática”, pondera.

Para ela, o Código se reinventa na prática cotidiana, porque os princípios que o sustentam não envelhecem. “O direito à informação, à proteção contra abusos e à transparência é tão necessário hoje, diante do mundo digital e da emergência climática, quanto era há 35 anos, quando o CDC nasceu, mas ainda subutilizamos suas imensas possibilidades.”

Cronologia dos principais marcos do consumidor

1985 – Antes da criação do CDC, a ONU criou uma resolução que apontou, mundialmente, sete direitos básicos aos consumidores

1990 – Lei nº 8.078 que institui o CDC.
1997 – Padronização das fiscalizações e fortalecimento dos Procons.
2004 – Súmula 297 do STJ confirma aplicação do CDC a contratos bancários.
2006 – ADI 2.591 do STF sujeita as instituições financeiras às normas do CDC.
2008 – Decreto nº 6.523 regulamenta os Serviços de Atendimento ao Consumidor (SAC).
2010 – Lei nº 12.291 torna obrigatório manter exemplar do CDC em estabelecimentos.
2011 – Lei nº 12.414 regula o Cadastro Positivo e o histórico de crédito.
2012 – Criação da Senacon e fortalecimento do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor (SNDC).
2013 – Decreto nº 7.962 estabelece regras para o comércio eletrônico.
2014 – Marco Civil da Internet e criação da plataforma Consumidor.gov.br.
2015 – Normas reforçam o direito de arrependimento em compras online e a clareza das informações.
2016 – ANAC regulamenta reembolso, remarcação e assistência em atrasos e cancelamentos de voos.
2018 – LGPD e Lei dos Distratos; STJ aplica CDC a planos de saúde (exceto autogestão).
2019 – Lei Complementar nº 166 atualiza o Cadastro Positivo.
2021 – Lei do Superendividamento.
2023 – STJ reforça responsabilidade de bancos por fraudes digitais e vazamentos de dados.
Hoje – Jurisprudência consolida a aplicação do CDC a bancos, planos de saúde e crimes digitais