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Enzo e os sonhos de ver a barba crescer, ter uma vida confortável e ser pai

Enzo e os sonhos de ver a barba crescer, ter uma vida confortável e ser pai

Publicado em
Texto: Amanda Sobreira
Foto: ZeRosa Filho
ILUSTRAÇÕES: VALDIR MARTE

“As pessoas têm essa perspectiva de que pessoas trans têm sonhos muito específicos, né?”. Foi com essa reflexão que Enzo Gomes, um homem negro, gordo e trans de 28 anos, iniciou nossa conversa em um dos bancos da Praça dos Mártires, mais conhecida como Passeio Público, a mais antiga de Fortaleza. Bem ali, debaixo da sombra do enorme e centenário baobá, árvore sagrada em África e simbólica para religiões daquele continente, ele confessou ter sonhos  que, para homens cisgênero, podem parecer “muito simples.”

“Quero que minha barba cresça; quero minha cirurgia. Quero, mas sou meio minimalista, sabe? Quero construir uma família; ter essa possibilidade que pessoas cis têm de forma muito tranquila. A possibilidade de possuir uma casa, um carro. Uma vida confortável para que eu possa viajar todo ano. Que eu possa andar na rua sem enfrentar barreiras de segurança, sem medo de ser espancado, de viver uma violência. Isso pra mim é um sonho.”

Sonhos possíveis, mas que ficaram mais distantes para Enzo quando, aos 18 anos, ele foi “arrancado do armário” pela mãe. Sem o jovem saber, ela descobriu a identidade de gênero do filho em mensagens no celular dele e o expulsou de casa. “Eu ainda estava tentando entender tudo. Ainda tinha o cabelo grande e, de repente, me vi sozinho. Sofri uma evasão escolar compulsória porque como saí de casa ou eu estudava ou trabalhava. Por isso, só agora estou terminando a faculdade de psicologia. Esse é meu sonho para esse ano”, conta. Além da universidade, Enzo está em vias de concluir o curso de espanhol e já iniciou o de inglês.

Se qualificar e pesquisar a transmasculinidade foi o caminho escolhido por ele para conquistar objetivos. Os estudos e a militância o salvaram de fazer parte da triste estatística que ainda coloca o Brasil como o país que mais mata transsexuais no mundo. No estudo da Rede Nacional de Pessoas Trans do Brasil (Rede Trans Brasil), foram registrados 119 casos de homicídios de pessoas trans e travestis em 2023 no país. Um aumento de cerca de 11% em relação ao ano de 2022, onde foram registrados 100 casos. A maior concentração de mortes violentas foi contabilizada na região Nordeste, com 39,5% dos casos. O Ceará segue como o segundo estado mais violento, como em 2022. Foram 12 casos em 2023.

Aos 28 anos, Enzo é vice-coordenador do Instituto Brasileiro de Transmasculinidades (Ibrat) e orientador da célula em diversidade e acessibilidade cultural da Secretaria de Cultura do Ceará (Secult).  “Eu sou o primeiro trans que trabalha na Secult  e ainda temos um longo caminho para que eu não seja só o primeiro. A sociedade precisa entender que pessoas trans têm formações. Tem muita gente boa que agrega muito conhecimento, mas precisamos de vontade pública para colocar essas pessoas nesses equipamentos”, ressalta.

Antes de conseguir um trabalho formal, Enzo passou por diversas experiências no chamado subemprego, aqueles que não exigem qualificação, pagam pouco e não têm vínculo empregatício. “Eu acredito na minha excelência e na excelência de várias outras pessoas trans que não têm espaço para trabalhar simplesmente por serem trans. É muito excludente. Mas a Erika Hilton (deputada federal por São Paulo) está aí para provar que a gente é excelente naquilo que se propõe. Eu sinto falta de pessoas trans em locais de poder. É péssimo a gente ter pessoas antidemocráticas fazendo políticas públicas para pessoas como nós, da diversidade.”

PATERNIDADE
Desde que foi expulso de casa, há dez anos, Enzo contou apenas com a ajuda dos amigos para sobreviver. A relação com a mãe melhorou, mas, nas palavras dele, o pai é irrelevante. Partindo da sua vivência e com o desejo de transformar o mundo ao redor de si, surgiu o desejo de ser pai e ir além: ressignificar os papéis sociais atrelados aos órgãos genitais que desconsideram as identidades de gênero das pessoas. Enzo quer gestar o próprio filho.  Afinal, o cuidado tem gênero?

“Quero ser pai para poder ter a possibilidade de fazer melhor. Para que eu consiga ser melhor do que os meus pais foram. Quero engravidar, gestar, aceitar a pessoa que vem do jeito que ela é. Quero também trazer essa perspectiva de outras paternalidades, sabe? A gente entende que a figura paterna no Brasil é miserável. Os pais abandonam as crianças ou nem registram as crianças. Então, meu sonho hoje em dia é ser pai”, afirma.

“A GENTE SEGUE RESISTINDO”
Longe de buscar um conceito único para o que significa família, ela é o primeiro espaço que garante a sobrevivência e a proteção integral de filhos(as) e dos demais integrantes, independente do arranjo ou das ligações sanguíneas. É nesse núcleo primário que se dá o primeiro aporte de padrões culturais, valores e objetivos sociais.

“A família normal seria a cisgeneridade. Temos várias discussões que poderíamos fazer sobre essa sociedade, cultura produtora fundamentalista que traz uma lógica da padronização, que produz o apagamento identitário, da raça, da cor, das etnias, das corporalidades, da sexualidade. O fundamentalismo é uma bancada produtora desses bloqueios”, pontua Dan Kaio lemos, homem transfeminista, ativista dos Direitos Humanos, antropólogo, doutorando em Ciências Sociais (UNB), pesquisador da Univesp e do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, e membro do Núcleo de Transparentalidades do Ibrat.

 

Dan Kaio Lemos [FOTO: ARQUIVO PESSOAL]


As qualificações de Dan Kaio encheriam de orgulho qualquer pai e qualquer mãe. Mas essa alegria ele não sentiu. Com uma transição iniciada ainda na adolescência, o rapaz rompeu fortemente as relações familiares. Também precisou parar de estudar, chegou a fundar uma casa de acolhimento para homens trans que, assim como ele, tinham sido descartados do ambiente doméstico e viviam em situação de vulnerabilidade.

“Chamei minha mãe para ela ver o tanto de alimentos que tínhamos arrecadado para o abrigo, mas ela disse que essa obra era coisa do diabo. A rejeição às pessoas trans é muito forte também por conta do fundamentalismo religioso. É ele que dá condição aos pais de rejeitarem seus filhos, expulsarem de casa, violentar, matar… É outro enfrentamento que a gente faz para existir e resistir dentro dessa sociedade ocidental patriarcal que é extremamente profunda”, analisa ele que, em breve, viaja para um doutorado sanduíche no Canadá.

Enzo e Dan Kaio são exceção em um mundo no qual a transfobia e as barreiras sociais se unem para impedir a entrada de pessoas trans em todas as esferas da sociedade brasileira. Falar sobre o Dia da Visibilidade Trans e Travesti é um ato de resistência e teimosia. É debater o tema para manter viva a luta por direitos, respeito e oportunidade de existir.

“O atual governo precisa desnaturalizar o que foi naturalizado no governo anterior. Precisa pegar as pautas e as demandas que foram efetivas mas entraram em situação de risco e reafirmá-las. Muitas garantias que nós tínhamos foram sucateadas, como os ambulatórios. Muitos hormônios foram descadastrados do SUS. Os direitos reprodutivos para a garantia de uma construção familiar parental estão ameaçados. Além de não sermos pertencentes à família sanguínea, também não somos ao Estado, à lei, ao acesso das garantias… É um total abandono. Mas a gente segue resistindo e sonhando”, avalia Dan.

A DPCE inicia hoje a série “Sonhar é resistir”, sobre os sonhos de pessoas trans e travestis. Nesta terça-feira (30/1), você conhecerá a história de Mabel Castro.