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“Eu quero fortalecer a luta dos movimentos sociais”, adianta Joyce Ramos, nova ouvidora geral externa da Defensoria

“Eu quero fortalecer a luta dos movimentos sociais”, adianta Joyce Ramos, nova ouvidora geral externa da Defensoria

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Empossada tanto pela ritualística institucional quanto pela tradição do quilombismo, a nova ouvidora geral da Defensoria Pública do Ceará (DPCE), historiadora Joyce Ramos, assume o cargo com expectativa dupla: manter em alta uma produtividade que explodiu desde o início da pandemia do novo coronavírus, em 2020, e garantir que o setor seja cada vez mais uma caixa de ressonância da sociedade.

Joyce dá os primeiros passos do mandato abrindo o diálogo com ouvidores e ouvidoras das demais defensorias brasileiras. Quer mapear boas práticas, conversar com representantes de movimentos sociais e, assim, construir uma gestão participativa tanto com membros da DPCE quanto com assistidos e outras instituições.

Em entrevista concedida à Assessoria de Comunicação da Defensoria, ela, que é a primeira pessoa quilombola a tornar-se ouvidora da entidade, revisita a própria trajetória e traça planos do que sonha para o setor. Oriunda da terra, no sentido mais literal que isso possa ter, Joyce tem a própria história como inspiração. Mas também sabe que: “eu estar aqui é uma resposta a o que Dragão do Mar, Preta Tia Simoa, Dandara e Zumbi dos Palmares fizeram lá no passado. É esse legado que eu trago e que eu quero honrar nesses próximos dois anos.”

Confira a entrevista.

DEFENSORIA l Quem é a Francisca Joicemeiry Ramos de Brito?
Eu sou filha da Maria Rosemeire Ramos Brito. Tenho mais três irmãos, sendo que eu sou a mais velha. Somos três mulheres e um homem. Nasci numa comunidade que até então ainda não tinha recebido o reconhecimento de comunidade quilombola. Nós só conhecíamos como Comunidade Rural Serra do Evaristo. Me criei nessa comunidade até uns 12 anos. Com 13, 14 anos, eu saio da zona rural e vou pra cidade de Baturité. Não por escolha, mas por uma situação de extrema pobreza. Minha família era muito pobre, de passar necessidades terríveis. De passar fome. Nessa época, minha mãe tinha conseguido uma espécie de casa popular e nós fomos morar na cidade. Meu pai conseguiu um emprego, um bico, e a gente foi se virando.

DEFENSORIA l Como se desenha a possibilidade de você ser lançada candidata à Ouvidoria?
Eu atuei no setor de direitos humanos do MST durante muito tempo. Foi o primeiro espaço em que eu me apropriei bem sobre o que eram essas pautas. Depois, dei aula no ProJovem Urbano e, depois, no programa Fortaleza Alfabetizada e fui ampliando outras questões, como o direito à educação, direito das mulheres etc. Então, eu sempre atuei em pautas que serviram muito pra que eu pudesse chegar aqui hoje.

Mas, até então, os movimentos que correspondem hoje ao campo político que eu faço parte, que a gente denomina de campo do Projeto Popular, nós não tínhamos nos envolvido nas disputas institucionais. A gente sempre ficou na luta popular, mas entendendo que teria que fortalecer espaços institucionais pra obter conquistas pra luta social. E foi através de advogados populares, essa turma que tanto milita no movimento social quanto no Direito, que eu tomei conhecimento do que era a Ouvidoria, da importância que ela tem pros movimentos, de qual era o processo que estávamos, de que era o da necessidade de reocupa-la vendo esse espaço como dos movimentos. Quando eu fui chamada pra vir a participar do processo, é porque as pessoas entenderam que eu tinha um perfil. Justamente pela minha trajetória. Por isso que eu disse no meu discurso de posse: “eu não cheguei aqui à toa e sim como fruto de um processo.”

DEFENSORIA l E pra ti foi tranquilo isso?
Não foi tranquilo. Não foi tranquilo porque quem me conhece sabe que eu tenho muito essa coisa do poder da responsabilidade. Eu fico: “será se eu vou dar conta? Será se é isso mesmo? Eu vou ter capacidade pra isso? Não é muito desafiador?”. Fiz muito essas perguntas: “vocês têm certeza? Eu tenho esse perfil?”. E as pessoas me diziam: “tem sim, Joyce! Você não vai fazer nada muito diferente do que já faz.”

Então, sim, eu fiquei receosa. Fiquei não. Estou receosa ainda. Mas compreendo também como algo que não é particular meu. Eu não estou aqui pra me apropriar das coisas. Eu estou aqui me entendendo como coletivo. Que toda a retaguarda que me trouxe aqui vai me ajudar a conduzir esse processo, de me dizer, inclusive, de como deve ser a minha atuação. Eu não tenho medo de aguardar que o movimento diga: “a gente quer isso, assim, assim, assim”. E eu vou acatar.

Me tranquilizei mais quando compreendi que não estou só. Tenho a retaguarda dos movimentos, que vão me demandar, como eu tenho a retaguarda da própria instituição, da própria Defensoria, que me acolheu e pode me ajudar nos encaminhamentos. Estou entendendo que esses dois sujeitos, Defensoria e movimentos, vão ser a junção perfeita para uma boa gestão.

 

 

DEFENSORIA l Você disse que vai juntar os movimentos numa espécie de plenária. Como isso vai se desenhar?
Eu quero muito fazer uma gestão compartilhada, no sentido de os movimentos dizerem como deve ser a Ouvidoria. Eu quero ter uma marca não de resolver um processo do sistema. Isso é importante? É. Mas já tem gente aqui extremamente profissional pra isso. Eu quero aqui fortalecer a luta dos movimentos. Quero pensar em grandes projetos. Como fortaleço o movimento de mulheres? De juventude? O movimento negro? Quero pensar aqui e esse planejamento com os movimentos é exatamente nesse intuito. Da gente sair daqui tendo conseguido fortalecer a luta popular.

Por exemplo: um acompanhamento de reintegração de posse. Isso é algo que eu quero fortalecer no sentido de garantir o direito à moradia, de fazer com que determinado grupo possa ter a sua terra e que a Ouvidoria possa contribuir com isso. Que a Defensoria, através da Ouvidoria, possa fazer isso. Então, vou fazer um planejamento com os movimentos para que esse fortalecimento possa acontecer. Não quero ficar aqui só nas demandas do dia a dia. Quer dizer que não vou tratar isso como prioritário? Vou. Mas, em paralelo a isso, quero fortalecer a luta.

DEFENSORIA l Mas você já tem algum calendário dessas atividades?
Assim que eu voltar do encontro do Conselho Nacional de Ouvidorias (que aconteceu em Goiânia de 26 a 28 de setembro), já quero fazer essa proposta de plenária dos movimentos. E, dessa plenária, a gente já encaminhar esse planejamento. Pra gente realmente ouvir os movimentos. O que a Central dos Movimentos Populares gostaria que a Ouvidoria fortalecesse? O que o Levante Popular da Juventude acha que deve ser a Ouvidoria? O que o Movimento de Mulheres acha? Eu quero escutar. Escutar, sistematizar e a gente ter aqui uma espécie de calendário.

DEFENSORIA l Você é a primeira mulher quilombola a assumir a Ouvidoria. Antes de você, só pessoas negras estiveram nesse cargo. O que isso significa? E o que a tua característica de quilombola te diferencia das pessoas que pavimentaram o caminho no qual você está hoje?

A primeira coisa que eu sinto sobre esse histórico é um empoderamento dos pretos e das pretas. A segunda coisa é enxergar nesse espaço uma ferramenta de luta, compreendendo a sua importância tanto quanto fosse uma luta de rua. A terceira coisa é que nós fazemos parte da história do Brasil e como também a Defensoria é fruto de uma luta em que o povo preto esteve à frente justamente por ter negados direitos, ser o mais prejudicado e o que sofria discriminação. A Defensoria é fruto de uma luta. A Defensoria não existiria se não tivessem essas lutas. E o povo preto esteve ali, no comando, de frente, pra que garantisse uma instituição pra ser chamada de sua. Que levasse suas reivindicações, suas dores para serem ouvidas e para seus problemas serem resolvidos.

Por ser quilombola, enxergo mais ainda esse processo. Porque sou uma mulher negra, que já trago todo o sofrimento, uma luta em vida. Mas, além disso, sou pertencente a uma comunidade que viu seus antepassados sofrendo, sendo escravizados, que teve a bisavó por parte de pai sendo escravizada, e eu até me emociono ao lembrar disso. Então, pra mim, isso aqui representa agora uma resposta. Uma resposta ao que foi todo o sofrimento, o que foi a história do Brasil, com o povo escravizado, com uma abolição inacabada. E, agora, nós temos, além da luta, uma instituição que efetivamente garante que o povo preto tenha a sua vez e a sua voz. Pra mim, representa tudo isso. Aqui é uma resposta do que Dragão do Mar, Preta Tia Simoa, Dandara, Zumbi fizeram lá no passado. É esse legado que eu trago e que eu quero honrar nesses próximos dois anos.

DEFENSORIA l A sua chegada à Defensoria coincide com um momento político que se mostra mais favorável à pauta dos direitos humanos e das comunidades tradicionais do que em um passado próximo. Qual tua expectativa enquanto cidadã, alguém que vem de movimento social e ouvidora?

Nós estamos vivenciando um momento de reconstrução do Brasil. Reconstrução, sobretudo, do ponto de vista do seu povo. De como o povo brasileiro foi tratado durante anos passados. E foi tratado na forma do extermínio, do genocídio, de enxergar a fome como um projeto de morte. Tudo isso a gente sentiu na pele e, agora, a gente tem a oportunidade de reconstruir. Mas não só reconstruir do ponto de vista de ter um presidente da República, um governador e parlamentares comprometidos. Mas de ocupar as instituições. De garantir projeto de país nessas instituições.

O fato de eu estar aqui representa um projeto. Eu quero fazer parte de um projeto de nação. E que aqui eu me sinta fortalecida por ter um presidente que vai me dar um suporte, que eu possa dialogar com secretarias, que eu possa dialogar com ministérios, que a gente consiga obter conquistas nos próximos anos. Então, tudo isso aqui perpassa por uma questão de projeto. Projeto de sociedade. Projeto de país.

“Ah, mas tu é só uma ouvidora”, podem dizer. Mas a gente quer integrar, quer fazer algo que venha a ter esse leque de oportunidades. Que eu, como ouvidora, possa contribuir, por exemplo, pra fortalecer um projeto de cozinhas populares. Um programa de governo! Que isso esteja interligado pra essa tal reconstrução do Brasil que a gente quer fazer. E tem muita coisa pra ser feita. Agora é a oportunidade e que bom que eu peguei esse período, porque é uma oportunidade de você visualizar perspectivas. De entender: opa, temos um Ministério de Direitos Humanos, uma Secretaria de Direitos Humanos e uma Secretaria da Diversidade. E, ali, a Defensoria, ó, caminhando junto. Mas com esse intuito de projeto. Quem entrar aqui, tem que ter em mente não um projeto pessoal, mas de País. De como eu quero o meu Ceará integrado numa realidade mais ampla.

DEFENSORIA l Pelo o que você fala, a sua gestão como ouvidora não vai ser “pra dentro”, então…
Não. Eu quero “pra fora”. Eu tô indo pra esse encontro das Ouvidorias justamente porque quero conhecer como funciona, que experiências é possível a gente pode trazer pra cá, como se dialoga com as demais instituições, como a gente forma parceria, como a gente obtém conquistas concretas. A minha cabeça tá pensando longe. Não sei se a gente vai conseguir caminhar até lá, mas pelo menos é isso que eu tenho em mente: que a Ouvidoria aqui se fortaleça juntamente com as demais e a gente consiga fazer essa coisa circular de forma integrada. Que haja uma unidade e a gente vá aprendendo e tendo conquistas práticas.

DEFENSORIA l Como você pretende costurar o diálogo com outras ouvidorias considerando que a Defensoria do Ceará tem um quarto de século, há defensorias que foram criadas ano passado e, ao mesmo tempo, há Defensoria da década de 1950? Como lidar com realidades tão distintas?

Eu quero ter a oportunidade de aprender. De ter uma experiência que eu possa, inclusive, ao voltar, enxergar possibilidades. É muito na troca, de termos defensorias com histórias maiores e a gente aprender juntas, pelo diálogo. Que a gente não ache que os problemas daqui são só daqui, mas que consigamos ter uma noção do todo.

Um dos meus propósitos quando eu vim disputar a eleição da Ouvidoria era garantir que a Defensoria do Ceará voltasse ao Conselho Nacional. Já garanti. Então, pra mim, isso já é uma conquista. A primeira meta foi atingida. A segunda é garantir a interiorização da Defensoria. A ampliação da Defensoria. Falo da ampliação da Defensoria mesmo. Que, na verdade, é um projeto em diálogo já.

Já se tem em mente que nos próximos anos teremos uma espécie de coouvidores, justamente nessa ideia de descentralizar o serviço sabendo a realidade de cada região. Mas quando falo de interiorização da Defensoria já é um passo para que tenha as Coouvidorias. Então, garantir pra que a gente consiga e, em nível nacional, fazer com que essa experiência seja levada pra outros estados.

DEFENSORIA l Em que momento da vida você teve vivência institucional?
Vim ter uma experiência institucional no governo da Luizianne Lins em Fortaleza. Foi a época em que terminei o curso de História (na UFPB), voltei pra Fortaleza, estava tendo as turmas do ProJovem Urbano e eu me tornei professora desse programa. Eu enxergava o ProJovem como uma ferramenta de fazer militância, só que agora na realidade urbana e não na rural. E optei por ser professora das regiões mais carentes, na Regional 6. Se eu queria conhecer a realidade urbana, eu tinha que ir pra onde está a população e pra onde estão os problemas sociais.

DEFENSORIA l Interessante você dizer isso porque no discurso de posse você disse que queria unir a luta social da luta institucional. E, na sua trajetória, você juntou o rural com o urbano, a família com o movimento. Todo o seu percurso se dá nessa perspectiva…

Exatamente. De procurar ampliar. De ver outras dimensões. É o que tenho dito: eu venho pra somar.