Herança dos tempos da colonização do Brasil, intolerância religiosa pode ser denunciada; saiba como
Diferente de países como Argentina, Afeganistão, Grécia, Vaticano e Dinamarca, o Brasil é um país laico. Ou seja: não tem religião oficial. E mais: garante, de acordo com o artigo 5º da Constituição Federal, que toda pessoa pode manifestar crenças e cultos livremente, assim como ninguém tem a obrigatoriedade de exercê-los.
Apesar desse resguardo legal, ainda são recorrentes os casos de discriminação relacionados à religiosidade. Segundo o Governo Federal, uma denúncia de intolerância religiosa é registrada no país a cada 15 horas. E 39% das vítimas são de religiões de matriz afrobrasileira, com a cantora Anitta protagonizando o caso público mais recente. Esta semana, a famosa sofreu ataques em redes sociais ao postar foto vestindo trajes do candomblé. Ela frequenta o terreiro há oito anos.

O episódio expõe o quanto a intolerância religiosa tem relação com o racismo e como está marcada na história da humanidade, principalmente porque a religião foi um meio de exercer poder político e controlar a população. Hoje, contudo, quem praticar, induzir ou incitar a discriminação por motivos de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional pode ser punido com um a três anos de reclusão e aplicação de multa. É o que prevê a Lei nº 9.459, de 13 de maio de 1997.
Para além disso (e da garantia constitucional), há ainda o pacto estabelecido pela Organização das Nações Unidas (ONU) para preservar cultos, fés, religiosidades etc. Quem for vítima de intolerância religiosa, pode recorrer à Defensoria Pública Geral do Estado do Ceará (DPCE) e, em Fortaleza, ao Núcleo de Direitos Humanos e Ações Coletivas (NDHAC).
Supervisora do NDHAC, a defensora pública Mariana Lobo ressalta o papel estratégico da DPCE diante do cenário atual. “O Núcleo está na retaguarda para a defesa de violações de direitos humanos, englobando várias atribuições, combate ao racismo estrutural e ao preconceito em geral contra minorias, acesso à educação, pessoas em situação de rua, comunidades tradicionais, direito ambiental, ofensas por meio da internet, entre outros. Trabalhamos também na preservação e reparação dos direitos de grupos sociais vulneráveis e de pessoas vítimas de tortura, discriminação ou qualquer outra forma de opressão ou violência. Em um momento de crescente violência contra as populações que se encontram em vulnerabilidade, a Defensoria Pública é imprescindível para a garantia de direitos fundamentais resguardados pela Carta Magna”, destaca.
Denunciar torna possível que os órgãos de defesa dos Direitos Humanos atuem em prol da população, bem como da garantia dos seus direitos. Os canais de denúncias são amplos e considerados o primeiro passo para a quebra do ciclo de violação de direitos humanos. Em Fortaleza, a Defensoria dispõe do NDHAC. Mas também é possível acionar o 190 ou a central de Direitos Humanos (Disque 100).
Pesquisador e autor de um livro sobre o tema, o professor Sidnei Nogueira avalia o quanto a intolerância religiosa contra práticas africanas – assim como o racismo – é uma herança do Brasil dos tempos da colonização. É uma forma de reforçar 400 anos da história nacional edificados sobre o tráfico negreiro, a escravização e a exclusão da população negra das políticas sociais, além de invisibilizar elementos e simbologias fundamentais à construção do país. O apagamento da cultura africana e do povo nativo foi uma missão iniciada com os Jesuítas e que persiste até hoje. “Tirando o jogador Paulinho [atacante da Seleção Brasileira, que nas Olimpíadas manifestou-se publicamente], eu não me lembro de mais ninguém [que tenha feito o mesmo]. Não há pessoas de sucesso que são de Terreiro. Obviamente que há e não são poucas, mas uma narrativa hegemônica racista impede que estas pessoas assumam a sua pertença religiosa vinculada à diáspora africana. É importante que se assumam? Sim. É importante. Porque a política vê números e visibilidade. Trata-se de disputa de narrativas”, pontua o estudioso.
PERTO DO POVO
Desde 2016, a Defensoria Pública do Estado do Ceará (DPCE) implementou a política institucional da Posse Popular, quando o defensor público e a defensora pública são referendados por movimentos sociais, sociedade civil e população para tomar posse no cargo. Cada evento acontece em um local relacionado à luta popular. Comunidades indígenas, povos que lutam pelo direito à moradia digna, terreiros e territórios quilombolas já foram palco das solenidades.
Nesta semana, a defensora pública geral Elizabeth Chagas foi referendada no cargo em posse popular no Cariri. O ato cheio de simbolismo aconteceu no Terreiro das Pretas, no Crato, um lugar que faz da defesa da ancestralidade uma missão de vida. Mais que isso: junto com a comunidade, comprou a briga pela regularização das terras que ocupam, algo fundamental para a manutenção da história, do modo de vida e da subsistência do povo negro caririense.
De sorriso largo, roupas coloridas e cabeça adornada por uma coroa de lenço, a descendente do povo Quilombola Verônica Neuma das Neves Carvalho foi quem presidiu toda a solenidade da posse popular de Elizabeth Chagas. As roupas características mostram a simbologia: são traços, cores e palavras presentes na tradição. Um reflexo da resistência religiosa e cultural de quem busca profetizar a fé como um direito humano.
A luta dos povos de terreiro vem se consolidando. Cada encontro e fala visa ao livre exercício da religião no Estado. “Não há como afirmar que nossa sociedade não é racista, porque ela é estruturalmente edificada na lógica racista. E nós temos que combater isso. A espiritualidade é um aspecto essencial à existência humana. E ninguém pode ser tolhido de professar a fé na qual acredita. A Defensoria é parceira de todos aqueles e aquelas que se sentirem perseguidos. Não se admite mais esse tipo de conduta. Os tempos coloniais acabaram”, afirma Elizabeth Chagas.
COMO SER ATENDIDO
Em Fortaleza, quem sofrer intolerância religiosa, pode buscar o Núcleo de Direitos Humanos e Ações Coletivas e entrar com uma ação. É importante que se reúna provas da violação, como prints, fotos, áudios etc. Geralmente, é necessária a presença de alguma testemunha. É imprescindível o registro de um Boletim de Ocorrência e a apresentação de documentação pessoal básica (RG, CPF e comprovante de residência)
O atendimento no Núcleo acontece de forma presencial após agendamento, que pode ser realizado por meio dos canais: (85) 3194-5049 / (85) 98895-5514 / E-mail: ndhac@defensoria.ce.def.br. No Interior, a Defensoria acolhe vítimas de intolerância religiosa nos núcleos regulares, cujos contatos e endereços podem ser consultados clicando aqui.

