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Mabel e o sonho de uma rede na varanda com sorvete de tapioca

Mabel e o sonho de uma rede na varanda com sorvete de tapioca

Publicado em
Texto: Bruno de castro
Foto: ZeRosa Filho
ILUSTRAÇÕES: VALDIR MARTE

Uma revolução acontece por dentro de quem sonha. Mesmo que por fora, os outros, o mundo todo diga que esse lugar, do sonho, é só de alguns, o próprio sonho prova o contrário. Ele nos povoa. E Maria Isabel Rocha de Castro, a Mabel, sabe disso. Reivindica isso. Preta e travesti nascida na periferia de Fortaleza, ela, mesmo cheia de questões que a atravessam diante de todas essas características, não abandona o amanhã.

Mabel resume: “eu sonho de teimosa. Sou corajosa pra sonhar. Porém, a verdade é que a sociedade não me apresenta possibilidades de sonhar. E, quando eu supero isso, ela vem e me apresenta a incapacidade de realizar esse sonho. Mas eu sinto que todas as vezes em que me faltou o sonho me faltou a vontade de ficar viva. Não sei teorizar sobre isso, mas na minha vida o sonho representa exatamente a vontade de estar viva. Eu sinto que sonhar me faz viver. Então, realizo sonhos pra ter mais sonhos pra poder viver mais.”

E lá se vão 30 anos assim, com Mabel enquanto travesti desde 2018, quando se anunciou ao mundo em 21 de junho, dia do próprio aniversário, e traçando sonhos para os próximos cinco anos – período no qual vai se aproximar da expectativa média de vida de pessoas trans no Brasil. “Não pensei sobre quem vou ser daqui 20 anos, mas quero chegar lá. Posso dizer que, por tudo o que passei, deixei a vontade de não estar viva quando me reconheci travesti. E olhe que eu era um ocó [homem] muito bonito! Mas era difícil deixar aquela carcaça de lado.”

O desejo de ser Mabel foi, na verdade, o retorno tardio a uma realidade da infância, quando, ainda garoto, escondido da mãe, usava peruca e cantava com a irmã no banheiro. Sonhava. E já havia uma certeza ali: o universo masculino não lhe pertencia. Mas essa identidade travesti surgida na meninice foi interrompida por uma sociedade que lhe impunha a obrigação de ser homem. Ser o que de fato era tornava-se, então, sonho. E voltou a ser real com ela apenas aos 25 anos.

“Eu me torno um sonho pra mim mesma quando, ainda criança, não me permitem ser algo. Porque eu era, mas a sociedade foi me apagando. Me tirando de mim. Mas eu sei que sou Mabel desde muito tempo e só consegui estar viva porque entendi, já adulta, que não podia mais viver não sendo quem eu era. A saída foi assumir quem eu sou. Eu tinha planos, mas não sabia como organizá-los. Então, enquanto a sociedade quer determinar como a gente deve ser, eu reinventei aquilo que existia em mim. Me vingo me mantendo viva.”

Cumprida a principal das tarefas, de não sucumbir, mais sonhos floresceram. Concluir a faculdade, ser a primeira da família com um diploma de ensino superior acabou indo além: ocupou o lugar da primeira travesti assistente social formada pela Universidade Estadual do Ceará (Uece). Já outros sonhos foram redesenhados, trazidos de quando ela era criança e tinha propósitos artísticos e esportivos.

Mabel hoje projeta conquistas não só para si. Quer concluir a pós-graduação na qual está matriculada, mas também almeja ver as mulheres trans e travestis do sistema penitenciário cearense com certidões de nascimento retificadas. “Todas elas estão no meu sonho”. Pretende participar de competições com o time de vôlei do qual faz parte, mas sonha com a sobrinha na escola. Escreve versos para em breve publicá-los, pois palavras deságuam da gente pro outro, mas estuda para ser concursada da Uece e, assim, formar legiões de assistentes sociais comprometidos(as) com a luta anti-LGBTQIAPN+fobia. “Porque, pras questões mais objetivas, a gente não pode ser boba. Se fosse pra ser boba, a gente tinha nascido cishetero”, brinca.

Doutora em educação, professora universitária e líder de projetos que envolvem pessoas LGBTQIAPN+, a travesti Luma Andrade admite ser complexo falar de sonho a partir da realidade de homens trans, mulheres trans e travestis no Brasil – “porque a sociedade acredita que essas pessoas não deveriam existir”. Contudo, reconhece: “é possível sonhar, principalmente no momento político que estamos vivendo.”

As conquistas de pautas no Judiciário, a retomada de políticas de inclusão dessas populações e o avanço dos movimentos sociais fazem Luma acreditar em dias propícios ao sonho. “Aos nossos corpos, o limite é só viver. Não é nem viver em si, mas sobreviver a todas as adversidades da vida sem descartar os marcadores sociais das pessoas: qual é a raça dela? Qual a classe? Em qual situação geográfica ela habita? Qual a condição física dela? Os sonhos necessitam ser alcançados, mas pra isso tem todo um trajeto. E, para pessoas trans, o caminhar é mais longo. Mais árduo. Mais cheio de obstáculos, mesmo que, às vezes, o sonho seja uma coisa simples como frequentar a escola tendo respeitada sua identidade. Ou mudar o nome e o gênero nos documentos. Ou usar o banheiro com o qual se identifica. Tudo isso já é conquista. O desafio é tornar essas conquistas em práticas.”

Luma defende que se vá além do sonho. “É preciso ousar ir além do limite dos sonhos. Porque sempre nos limitaram, dizendo o que a gente não podia fazer ou o que a gente não podia ser.  Então, que a gente consiga ocupar espaços de tomada de decisão, onde quer que seja. Que a gente sonhe, mas também torne esses sonhos realidade. Eu nunca sonhei ser a primeira travesti doutora do Brasil ou diretora de um instituto porque sempre fui impedida de sonhar. Mas na luta, na garra e na ousadia, consegui realizar para além do sonho. A gente tem que pensar sempre que nossa potência de existência é importantíssima. Eu sou a prova viva disso.”

Hoje colaboradora da Defensoria, Mabel compreende os lugares aos quais a travestilidade pode lhe levar. “Na cabeça das pessoas, travesti não sonha. A sociedade não aceita que uma travesti organize sua vida. Então, quando eu organizo isso a partir do que eu sou, minha coragem me possibilita um caminho pra realizar o que eu sonho. Mas, no cálculo social, eu dei errado. Eu teria dado certo se estivesse na prostituição. Ou se estivesse morta. Eu fugi do script e meu sonho agora é uma vida tranquila. Alugar um canto onde eu possa armar minha rede, tomar meu sorvete de tapioca depois do almoço e jogar conversa fora. Tenho essa imagem na minha cabeça. Eu tento ser grata pela vida.”

É que quando uma travesti sonha o mundo inteiro se salva.

Nesta quarta-feira (31/1), a série “Sonhar é Resistir” vai apresentar a você os sonhos do homem trans Gabriel Queiroz.